É muito provável que você não tenha dito essa frase em voz alta, mas pode já ter pensado isso. No entanto, quando se trata de abuso sexual, as estatísticas estão contra você. Ficamos muito assustadas quando o assunto é a nossa segurança. Por mais que consideremos importante campanhas como a #metoo (do inglês, “eu também”), em que mulheres de todo o mundo relataram suas experiências de abuso sexual, não queremos fazer parte das estatísticas.

Meninas, cristãs como nós, que passaram por uma experiência abusiva, fingem que não, porque isso pode, em suas mentes, levar as pessoas a considerá-las frágeis ou menos atraentes (afinal, pensam elas, quem quer namorar alguém cheia de trauma?). Outras de nós, que nunca passaram por isso, acham que estão seguras porque não vão pra balada nem bebem. Lembra do que eu disse? As estatísticas estão contra você. Mas antes de apresentá-las, no entanto, quero esclarecer alguns termos.

Abuso sexual é a atividade sexual não desejada, em que o agressor usa a força, faz ameaças ou tira vantagem da vítima incapaz de dar consentimento (1). Formas de abuso sexual incluem carícias indesejadas, masturbação, sexo oral, vaginal ou anal forçados. Assédio sexual também é considerado abuso sexual, no entanto, não é preciso contato físico para que haja agressão. Palavras constrangedoras, tentativas de toque e avanços sem permissão da outra pessoa, constrangimento com brincadeiras de teor sexual, observações sobre partes do corpo da vítima, pressão psicológica em troca de favores fazem parte das atitudes de quem assedia um pessoa. (No Brasil, a lei 12.015/2009 protege as vítimas nos casos dos chamados “crimes contra a dignidade sexual.) (2)

Quando alguém usa sua posição de autoridade, seu carisma ou força física para se envolver sexualmente com alguém, é abuso. Um chefe com a secretária, um psicólogo com um cliente, um professor com uma estudante, um padrasto com a enteada, um garoto do ensino médio com um garoto do fundamental, um líder de jovens com uma jovem moça ou um rapaz. Em todas essas situações, o sentido de poder é distorcido, isso facilita que uma pessoa abuse de outra.

Essas dinâmicas de relacionamento sempre estarão presentes: não há professor sem estudante, ou psicólogo sem cliente, ou tio sem sobrinha. Isso torna mais difícil saber como lidar com essas pessoas, pois são posições de autoridade e que exigem confiança. Também fica mais difícil reconhecer e solucionar o problema: a ameaça pode estar em qualquer lugar.

Como eu disse, as estatísticas estão contra você. Ei-las aqui (3):

    • No Brasil, 70% dos abusos sao praticados contra menores de 18 anos.
    • A maioria dos agressores são homens heterossexuais (4).
    • 70% das vítimas infantis declararam conhecer pessoalmente o agressor: pai, padrasto, namorado da mãe, o próprio namorado ou ficante, tio, amigo da família, professor, líder religioso. Ou seja, o estranho na rua dos filmes constitui apenas 10% dos casos infantis. Em casos adultos, o estranho na rua está em 60% dos casos.
    • 1 em 4 mulheres e 1 em 6 homens serão vítimas de abuso sexual antes de completarem 18 anos.
    • Em um terço dos casos contra menores o agressor também é menor de 18 anos.
    • A maioria dos abusos contra criança não acontece com uso de força física, mas de técnicas de sedução – a pessoa conquista a confiança da vítima, da família e da sociedade antes de praticar o ato de violência. Vítimas adultas têm maior chance de ter sofrido violência física.
    • Um agressor sexual tem menos de 3% de chance de ser pego. Repito, menos de 3%.
    • Apenas 5 a 12% dos casos de abuso sexual é reportado à polícia.
    • Na maioria dos casos, quando o caso vem à tona, pelo menos 3 pessoas próximas suspeitaram e não fizeram nada porque preferiram dar o benefício da dúvida.
    • Uma pesquisa feita com abusadores revelou que antes de serem presos eles já haviam sido denunciados previamente por crianças, mas esses relatos haviam sido ignorados. (5)

Se esses dados não te fazem chorar ou se contorcer de raiva, eu não sei como você consegue. Imagino Deus chorando cada vez que uma pessoa passa por uma situação dessas. Imagino a dor que Jesus sentiu na cruz ao levar sobre si o pecado de todo o mundo, além da dor que cada pecado cometido infligiu em cada ser humano tocado por ele.

No artigo de hoje, quero considerar como devemos reagir a este assunto: com sobriedade, com tristeza, e com atitude.

Com Sobriedade

Muitas igrejas evitam falar desse assunto por constrangimento ou porque envolve falar sobre sexo. Acesse sua memória aí. Qual foi a última vez que você ouviu um sermão, um estudo bíblico ou uma lição de escola dominical sobre esse assunto? Mas pense comigo, se 1 em 4 pessoas da igreja estivesse com câncer, você não acha que o pastor da igreja faria um sermão sobre isso? Se 30% dos menores de 18 estivessem regularmente “partindo pra briga” depois da reunião, você não acha que o líder de jovens falaria alguma coisa? Por que ninguém fala de abuso?

Precisamos deixar as emoções de lado por um momento e olhar as estatísticas. Elas são alarmantes! Precisamos falar sobre isso, mas sem exagero, sem desespero emocional, que não leva a ação, mas sendo fiéis a realidade que se apresenta. Precisamos abrir nossos olhos e ouvidos, parar para pensar como podemos agir e, então, nos dispor a fazer alguma coisa.

Com Tristeza

No entanto, também precisamos deixar as estatísticas de lado por um momento e sentir a dor do outro. É saudável, correto e até esperado que fiquemos tristes e enfurecidas contra a destruição causada pelo pecado. Não devemos fechar nossos olhos para a realidade nem tratar com frieza os números e dados. Por mais desconfortável que seja e mesmo sem sabermos o que dizer, somos chamadas a chorar com os que choram (Rm 12.15). E quando somos nós as que choram, não deveríamos simplesmente fingir que está tudo bem e carregar o peso do sofrimento sozinhas.

Podemos e devemos, em primeiro lugar, derramar diante de Deus o nosso lamento, mas também procurar pessoas de confiança que possam chorar conosco e com quem possamos compartilhar nosso fardo e caminhar em direção à cura. Independente de qual lado das estatísticas nós estamos, a vida cristã não combina com indiferença, isolamento nem fingimento, mas com o lamento sincero e humilde diante da realidade, um lamento que nos faz correr para Deus (e não de Deus) e encontrar nEle a nossa esperança, mesmo em meio à dor.

Com Atitude

Agora junte as estatísticas as suas emoções. Como você se sente? Ainda que entendamos que não é nossa culpa e que não deveríamos estar o tempo todo em estado de alerta, não podemos ser inocentes em achar que demonizar os homens e manter constantes campanhas contra a violência sexual serão suficientes para nos proteger.

Você atravessaria uma avenida sem olhar para os dois lados? Você entraria num avião sem saber pra onde está indo? Estamos constantemente confirmando os dados e olhando à nossa volta para saber se estamos no caminho certo. Quem nunca tomou mel ou suco de laranja para evitar resfriado? Cuidamos da nossa saúde com alimentação adequada e nos exercitando para que evitemos ficar doente. Quem nunca reclamou de ter que levar guarda-chuva quando o céu está claro? A gente sempre acaba obedecendo a mãe (ou volta pra casa encharcado de chuva). Por que não tomaríamos precauções com algo que pode deixar marcas profundas no nosso corpo e mente? Por isso…

Mães, ensinem suas crianças. Jovens, ergam suas barreiras. Igrejas, protejam seus jovens.

Pense comigo, se as estatísticas estiverem certas (e provavelmente os dados reais são piores) uma em quatro meninas sofreram algum abuso sexual antes dos 18. Se o seu grupo de jovens tem 50 pessoas, pelo menos 10 delas sofreram algum tipo de abuso. Em seu quarteto fantástico de amigas próximas, provavelmente uma já passou por isso. Está mais perto do que imaginamos.

Mães, ensinem suas crianças. Fale sobre as partes íntimas desde cedo – chame-as pelo nome apropriado. Deus fez pênis nos meninos e vagina nas meninas. Diga que essas partes são privadas e que apenas papai e mamãe podem vê-los nus (e ainda assim, somente até certa idade). Se o médico precisar vê-los, papai e mamãe estarão lá. Explique claramente que ninguém pode tocar as partes que ficam cobertas pelas roupas íntimas, e eles também não devem tocar as partes de ninguém – nem de outras crianças, nem de algum adulto, mesmo que ele peça. Diga que ninguém pode tirar fotos deles sem roupa nem forçá-los a ver fotos de outras pessoas sem roupa.

Ensine-os desde cedo que se eles se sentirem desconfortáveis em qualquer situação, eles têm a sua permissão para sair. Crianças normalmente não se sentem à vontade em dizer “não” a um adulto ou a uma criança mais velha. Diga a eles que “tudo bem se eles precisarem sair”. Acima de tudo, ensine-os a não guardar segredo! Não existe segredo nenhum que seja mais valioso que a segurança deles. Treine a si mesma para usar a palavra “surpresa” para outros eventos que necessitem de alguma omissão, como um presente de Natal ou uma festa de aniversário. Filhos não devem guardar segredos dos pais, principalmente os que se referem ao seu corpo. Diga que não importa quem peça que eles guardem segredo sobre o próprio corpo, eles devem sempre contar aos pais.

Jovens, ergam suas barreiras. Numa cultura tão calorosa como a nossa, é fácil aceitar a quebra de certas barreiras. No entanto, fique atenta para situações que te deixam desconfortável. Lembro de um amigo de meus pais com quem me sentia mal toda vez que o via. Os abraços dele eram estranhos, as conversas pareciam doces demais. Sempre que ele aparecia, eu queria me desvencilhar de passar tempo com ele e sua esposa. Um homem respeitado por muitos na igreja e na sociedade, mas eu me sentia mal perto dele. Demorei para reconhecer meu incômodo e aceitar que era permitido não me sentir bem perto dele e apropriado modificar os cumprimentos, de um abraço e beijo para um semi-abraço ou aperto de mão, ou mesmo um olá a distância.

Meninas, treinem sair de situações embaraçosas. Sintam-se à vontade em limitar o contato físico com alguém cujo comportamento lhes causa desconforto. Uma das técnicas de predadores é acostumar a vítima com situações limítrofes, especialmente quando pessoas à volta não se sentirão livres para confrontar, como linguagem depreciativa e obscena. Protejam-se de qualquer abertura sexual – qualquer tipo. Quanto mais nos acostumamos com linguagem obscena, com conversas de cunho sexual, com exposição demasiada do corpo (dos outros e nosso), nossas barreiras de desconforto com a sexualidade vão sendo derrubadas. O sexo é algo lindo que deve ser descoberto dentro do relacionamento de compromisso que é o casamento. Nossa tolerância com a sexualidade exposta nos deixa mais propensas a não ver barreiras sendo quebradas por agressores. Quando percebemos, fomos “conquistadas” por eles.

Igrejas, protejam seus jovens. Dois textos me vêm à mente quanto à responsabilidade dos cristãos em proteger do abuso sexual. O primeiro é Cânticos 8.8,9:

Eis que temos uma irmã ainda muito jovem, cujos seios aguardam o momento de aflorar. Que faremos por nossa irmã, no dia em que ela for pedida em casamento? Se ela for um muro, construiremos sobre ela uma torre de prata. Se ela for uma porta, nós a reforçaremos com tábuas de cedro.”

A família da moça, os seus irmãos, estão dispostos a protegê-la. Se ela cresce virtuosa e inacessível à tentação, ou seja, suas barreiras são altas (muro), eles irão celebrá-la com maior proteção (a torre, que avista o perigo de longe). Se ela for frágil e mais suscetível à tentação, ou seja, se suas barreiras são baixas ou nulas (uma porta), eles a protegerão com tábuas, de maneira que ela se torne difícil de acessar. Ainda que a impressão aqui seja de uma proteção mais direta contra o envolvimento sexual, não necessariamente o abuso, o princípio também se aplica aqui. Protejam. Protejam. Protejam.

O outro texto pode surpreender, assim como me surpreendeu na primeira vez que li com essa perspectiva. Vamos a Mateus 18:1-9.

Naquele momento os discípulos chegaram a Jesus e perguntaram: “Quem é o maior no Reino dos céus?” Chamando uma criança, colocou-a no meio deles, e disse: “Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus. Portanto, quem se faz humilde como esta criança, este é o maior no Reino dos céus. “Quem recebe uma destas crianças em meu nome, está me recebendo. Mas se alguém fizer tropeçar um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe seria amarrar uma pedra de moinho no pescoço e se afogar nas profundezas do mar. “Ai do mundo, por causa das coisas que fazem tropeçar! É inevitável que tais coisas aconteçam, mas ai daquele por meio de quem elas acontecem! Se a sua mão ou o seu pé o fizerem tropeçar, corte-os e jogue-os fora. É melhor entrar na vida mutilado ou aleijado do que, tendo as duas mãos ou os dois pés, ser lançado no fogo eterno. E se o seu olho o fizer tropeçar, arranque-o e jogue-o fora. É melhor entrar na vida com um só olho do que, tendo os dois olhos, ser lançado no fogo do inferno”.

O texto é bem claro: é melhor cometer suicídio do que causar dano a uma criança(6). A palavra grega usada para “tropeçar” é “scandalion” (de onde vem nossa palavra “escândalo”), ou seja, ofender de maneira a afastá-lo da fé. Muitos usam esse texto para afirmar o exemplo positivo de adultos frente às crianças, e de certa maneira, estão corretos em afirmá-lo. No entanto, a linguagem deste texto é particularmente semelhante à linguagem usada por Jesus no sermão do monte quanto ao adultério – retire de seu corpo aquilo que lhe faz pecar contra si mesmo ou contra o próximo. Sou levada a acreditar que Jesus se refere também ao abuso sexual contra crianças. Por causa do pecado que existe no coração de cada ser humano, é  inevitável que abusos aconteçam, pois esta é a realidade deste mundo perdido. Mas ai daquele que pratica tal ato vil!

Jesus deixa bem claro neste texto quão infame é o abuso, por que é tão devastador e qual a punição destinada aos que o praticam: amarrar uma pedra de moinho no pescoço e se afogar nas profundezas do mar. Ainda que essa punição pareça indicar uma forma menos cruel de morte, ela impediria que a pessoa fosse posteriormente enterrada, o que era particularmente infame para judeus e gentios da época (já que a pessoa era privada de um enterro apropriado).

Como seguidores de Cristo, precisamos sentir o mesmo horror por essa prática abominável que o próprio Jesus sentiu. Ai dos que a praticam! Ai dos que desejam praticá-la! É melhor que eles percam um membro do corpo, ou a própria vida, do que uma criança sofra em suas mãos.

Como pessoas que amam a Jesus, precisamos fazer alguma coisa! Ainda que não possamos acabar com o abuso, podemos agir para proteger a nós e aqueles que estão à nossa volta. Abra os olhos para a realidade, lamente juntamente com Cristo pelo abuso cometido e, então, faça alguma coisa.

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  1. Associação Americana de Psicologia. Disponível em: www.apa.org/topics/sexual-abuse/index
  2. Essas e outras definições e demais informações sobre a lei no Brasil estão disponíveis em https://mundodaeducacao..bol.uol.com.br/sexualidade/abuso-sexual.htm
  3. São considerados aqui os casos relatados. A realidade é que há mais situações do que as relatadas pelas vítimas ou denunciadas à polícia. O medo e a vergonha calam homens e mulheres por anos, por vezes, por toda uma vida.
  4. Na maioria dos casos reportados. No caso dos homens, as estatísticas são mais perturbadoras porque há um tabu da sociedade que diz que a) homens fazem brincadeiras sexuais uns com os outros, então é normal se isso acontecer com ele; b) homem que não aceita cantada de mulher não é homem, então o abuso é justificado como parte do processo de “tornar-se homem”; c) mulher é mais fraca, então não abusa, o que faz vários casos de abuso passarem despercebidos para os outros, ainda que deixe marcas profundas na vida do homem e, consequentemente, não serem denunciados.
  5. Esses e outros dados estão disponíveis em www.netgrace.org. Dados do Brasil foram retirados de um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Disponivel em: http://ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf
  6. Essa expressão “pequeninos” também é frequentemente interpretada como “pessoas vulneráveis” ou “novos na fé”, e não necessariamente crianças, ou seja, alguém em tenra idade.