Num enredo que daria contexto para um conto épico, existe dentro de nós um combate invisível, constantemente na iminência de eclosão. É a batalha que todo aquele que foi redimido pelo sangue de Cristo enfrenta diariamente, pois neste coexistem duas realidades: um homem interior, um espírito que tem passado pelo processo de santificação; e um homem exterior, uma natureza corrompida, uma carne na qual habita o pecado. Diante disso, dois grandes exércitos estão a postos. De um lado a Milícia da Carne, cujos soldados são diariamente alimentados por conceitos deturpados, hedonismo, ganância e imoralidade; e sem que haja um esforço para tal, o próprio curso deste século trata de oferecer à essa linha de frente esse tipo de cuidado. No contra ataque está a Milícia do Homem Interior que é alimentada por disciplinas espirituais, completamente dependentes da disposição do indivíduo que sedia o conflito. O agente regenerador do homem interior é o Espírito Santo, o próprio Deus, aliado de guerra, que capacita e santifica os seus para o confronto.

A batalha entre a carne e o Espírito é um assunto recorrente nas epístolas de Paulo, ora focando na própria corrupção da carne, ora focando na dimensão espiritual na qual a batalha se insere. Assim, o apóstolo traz considerações preciosas a respeito desse combate interior que permeia a todos os cristãos, ajudando-nos a compreender o que se passa dentro de nós, bem como mostrando-nos as armas com as quais devemos lutar.

Este artigo busca na carta aos Gálatas o entendimento sobre essa batalha invisível, porém muito perceptível, que acontece constantemente dentro de nós. O contexto da carta é, principalmente, a exortação de Paulo aos crentes da Galácia que estavam aceitando de bom grado a deturpação da Verdade por parte de alguns. Diante disso, a mensagem principal é que a obra que Jesus realizou é suficiente para salvação do homem e concede a este Sua justiça, livrando-o permanentemente da escravidão do pecado e da busca inútil pela auto-justificação por obras. A partir disso, o apóstolo apresenta o conceito da Liberdade em Cristo, que consiste na libertação da escravidão do pecado e na sujeição aos parâmetros santos de Deus para o homem. A questão introduzida aqui é que essa liberdade não significa licenciosidade e o cristão que quiser, de fato, submeter-se ao senhorio de Cristo e à liberdade que nEle é proporcionada, irá travar uma batalha árdua contra sua própria natureza pecaminosa.

  • A batalha

“Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam.” Gálatas 5.17

Somos salvos a partir do momento em que cremos e nos rendemos à supremacia de Cristo. Uma vez salvos, temos a segurança de que nada poderá nos separar do amor de Deus e que seu Santo Espírito passa a habitar em nós. A isso, um evento acontece em paralelo: a batalha entre carne e Espírito se inicia. Por quê? Porque mesmo que o Espírito Santo faça em nós morada, ainda permanecemos pecadores. A salvação que temos em Cristo Jesus possui três implicações para nós: 1) Nos libertou eternamente do castigo do pecado que é a morte; 2) Nos liberta progressivamente do domínio do pecado enquanto vivemos neste mundo; 3) Nos libertará definitivamente da presença do pecado quando estivermos na glória com Deus. Diante disso, dentro do plano divino de salvação, o tempo que vivemos hoje é o da libertação progressiva do domínio do pecado, processo que chamamos de santificação, o qual é realizado pela obra do Espírito em nossas vidas.

Fomos regenerados e reconciliados com Deus, mas nossa natureza ainda é pecaminosa. O que Deus requer de nós é que lutemos, que travemos uma batalha, que exerçamos uma ira justa contra toda e qualquer forma de pecado. A dificuldade reside no fato de que tudo o que é santo e é dom perfeito do alto coloca-se na linha de frente contra todo o desejo da natureza humana corrompida pelo pecado. “A carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne.” É uma batalha de mim contra mim mesmo, entre o que em mim tem sido renovado na justiça de Cristo e o que em mim resta de minha natureza. Duas realidades e uma batalha que não podemos negligenciar.

Se, de fato, dispusermos o coração à buscar a transformação realizada pelo Espírito Santo, reconhecendo e lutando contra nossos próprios pecados, chegaremos a sentir essa batalha de forma tão real e profunda em nosso íntimo a ponto de nos esgotarmos. Neste momento, o lamento de nossas almas encontrará nas palavras de Paulo completa identificação e consolo:

“Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo. Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer, esse eu continuo fazendo. Ora, se faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim. Assim, encontro esta lei que atua em mim: Quando quero fazer o bem, o mal está junto a mim. Pois, no íntimo do meu ser tenho prazer na lei de Deus; mas vejo outra lei atuando nos membros do meu corpo, guerreando contra a lei da minha mente, tornando-me prisioneiro da lei do pecado que atua em meus membros. Miserável homem eu que sou! Quem me libertará do corpo sujeito a esta morte? Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor! De modo que, com a mente, eu próprio sou escravo da lei de Deus; mas, com a carne, da lei do pecado.” Romanos 7.18-25

Existe uma batalha. O primeiro passo para entrarmos nela, vislumbrando a vitória no Espírito Santo, é reconhecer sua existência e compreender sua relevância sobre nossa caminhada cristã.

  • O campo de batalhas e a estratégia inimiga

“Ora, as obras da carne são manifestas: imoralidade sexual, impureza e libertinagem; idolatria e feitiçaria; ódio, discórdia, ciúmes, ira, egoísmo, dissensões, facções e inveja; embriaguez, orgias e coisas semelhantes. Eu os advirto, como antes já os adverti, que os que praticam essas coisas não herdarão o Reino de Deus.” Gálatas 5.19-21

Restaurada em Cristo, temos uma consciência que nos adverte quanto ao pecado. Por que, então, não negamos simplesmente tudo o que é ilegítimo diante de Deus e agimos totalmente em conformidade com sua santidade? Porque habitamos esta carne, e por carne entenda-se “natureza inteira do homem, seu senso e razão, sem o Espírito Santo” (Melanchton), logo suas obras são manifestas. Diante disso, numa análise simplista, pode-se julgar injusto o fato de termos que travar tão profunda batalha contra o que em nós é natural. O pecado é natural à carne, e se somos livres em Cristo, tendo acesso a seu perdão e cientes de que nada nos separa da salvação que tem desdobramento eternos, porque não pecar? Por que conter impulsos que nos são naturais? Por que não contar uma mentira para um bem maior? Por que não permitir que meus pensamentos construam cenários e situações que geram prazer? Por que não casar com alguém que não partilha da mesma fé? Por que não olhar se ninguém mais está vendo?

Qual é o campo de batalhas? Nossa mente. A estratégia inimiga? Relativismo. A linha de raciocínio que constrói o argumento apresentado anteriormente revela o conflito que toma nossas mentes quando princípios estabelecidos claramente pela Palavra de Deus passam a ser negociados, ajustados, adaptados, contextualizados… Se isso estiver se passando dentro de você, tenha certeza, você está no meio do combate! Paulo deixa essa situação clara em dois momentos em suas cartas:

“Cada um, porém, é tentado pela própria cobiça, sendo por esta arrastado e seduzido.  Então a cobiça, tendo engravidado, dá à luz o pecado; e o pecado, após ter-se consumado, gera a morte.” Tiago 1.14-15

“As armas com as quais lutamos não são humanas; pelo contrário, são poderosas em Deus para destruir fortalezas. Destruímos argumentos e toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levamos cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a Cristo.” 2 Coríntios 10.4,5.

Toda argumentação que se levante em nossas mentes para relativizar nosso pecado é estratégia de nossa própria carne na tentativa de manifestar e efetivar suas cobiças. Somente na capacitação do Espírito, contra nossas próprias forças, podemos levar nossos pensamentos cativos à obediência de Cristo e Sua vontade revelada. Estávamos mortos em delitos e pecados, não tínhamos escolha senão pecar; agora, libertos pelo sangue de Cristo, foi nos dada a escolha pois podemos não pecar, sujeitando-nos ao Senhorio de Jesus, e esta é nossa motivação de lutar por fazê-lo em gratidão e resposta à tão grande salvação que nos alcançou!

  • A vitória

“Por isso digo: vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos da carne.” Gálatas 5.16

“Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio. Contra essas coisas não há lei. Os que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e os seus desejos. Se vivemos pelo Espírito, andemos também pelo Espírito.” Gálatas 5.22-25

A obra de santificação é realizada pela ação do Espírito em nossas vidas, no entanto, não é um fato unilateral, depende de uma atitude responsiva de nossa parte, como o apóstolo coloca “Desenvolvei a vossa salvação, com tremor e temor” Filipenses 2.12. Como isso é possível? A manutenção de nossa vida cristã depende da prática de disciplinas espirituais ensinadas e praticadas pelos próprio Jesus enquanto aqui nesta terra. As principais são oração, conhecimento da Palavra e jejum. Somente através de uma disposição sincera de nossos corações para a prática de tais disciplinas poderemos obedecer a ordem de viver no Espírito, e, consequentemente, estaremos fortes o suficiente para não satisfazermos os desejos pecaminosos da carne. Nisto consiste nossa vitória.

Para concluir, é importante enfatizar que o bem maior nós já recebemos (a segurança da salvação em Cristo) e, diante disso, sempre haverá graça e perdão disponíveis à nós. Ainda assim, enquanto habitarmos este corpo de pecado, haverá uma carreira a ser percorrida e uma batalha a ser vencida. Graças a Deus por nosso Senhor Jesus Cristo que nos concedeu todas as armas para combater um bom combate e o aliado para todos os momentos, o Espírito Santo. “Vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos da carne” (Gl 5.17)! A ordem foi dada, bem como todos os meios necessários para cumpri-la. Na dependência dEle, a Milícia do Homem Interior pode vislumbrar sua vitória.