Por que você existe? Essa pergunta soou da boca de um professor em uma de minhas aulas no seminário. As respostas surgiram conforme o professor chamava por nome alguns alunos e, como um coral muito bem ensaiado num cânone contínuo, o que se ouviu foi: “para glória de Deus”. Eu mesma repeti estas palavras e no momento exato em que a última sílaba foi dita, percebi que elas soaram automáticas, frias e sem sentido, apesar de anunciarem uma verdade. Desde então tenho pensado sobre isso.

Por que Deus criou o homem? Em Gênesis 1.27,28 lemos: “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a”; em Isaías 45.18: “Porque assim diz o SENHOR, que criou os céus, o Deus que formou a terra, que a fez e a estabeleceu; que não a criou para ser um caos, mas para ser habitada: Eu sou o SENHOR, e não há outro” e em Efésios 1.11,12: “nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade, a fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os que de antemão esperamos em Cristo”. Tudo o que Deus fez foi para sua própria glória, seu desejo era ver a terra completamente habitada por pontos brilhantes, reflexos de Sua própria imagem, para o louvor de Si mesmo. No entanto, a imagem e semelhança de Deus, criada em perfeição, foi corrompida pela liberdade indevidamente exercida em Adão, que escolheu desobedecer e, através disso, imputou a escravidão do pecado a toda humanidade por sua representatividade.

No momento da queda, o coração humano despontou em seu orgulho. Ao desejar ser igual a Deus, o pecado corrompeu a essência da natureza humana e o orgulho passou a estar arraigado nela de maneira perigosa e intensa, tornando-se o cerne de toda ofensa. A criatura olhou com desdém para seu Criador e escolheu caminhar segundo seu próprio conselho, sem compreender, em sua ignorância, que é impossível viver desprovido da presença de Deus. Mesmo o coração mais endurecido vive pela graça de Deus, pois estar excluído desta implica em inexistência. Ao morder o fruto proibido, silenciosas palavras soaram: “Deus, eu não confio em Ti. Eu sei o que é melhor, eu sei o que me faz feliz, do meu jeito é melhor. Não creio que sejas suficientemente bom.” Autossuficiência. De maneira sutil e persuasiva, o pecado introduziu no homem a falsa concepção de independência. O propósito da existência humana foi manchado pela presença da ofensa. Como pode uma essência corrompida refletir o caráter de um Deus santo, tão puro de olhos que não pode contemplar o mal?

Imagine um Pai amoroso, que levanta muito cedo numa manhã fria para levar seu filho à escola. Prepara-lhe o café da manhã, acorda-o carinhosamente e provê todo o cuidado necessário. Na hora de sair, ambos se colocam em frente ao carro, o filho olha fixamente para o pai e, usando palavras que contém certa empolgação, diz: “Pode deixar que eu dirijo, aliás pode ficar em casa!”“Como assim?”– responde o pai – “você não sabe o caminho e, nem mesmo colocar a primeira marcha…”. Mas o menino não está muito interessado nas palavras de seu Pai. “Deixa comigo, eu sei o que estou fazendo…”. Não parece nem mesmo uma hipótese real que uma criança possa conduzir um carro, mas é exatamente o que eu e você fazemos. Desde Adão, nossa atitude tem sido entrar no carro, sozinhos, e nos atrapalharmos com marchas, pedais e caminhos a tomar. Esquecemos que quem nos prove tudo, até mesmo o carro que tentamos conduzir, é Deus.

Demorei para nomear esse pecado em minha vida. Cresci na igreja ouvindo sobre depender de Deus e minha mente aprendeu a formular discursos muito bonitos sobre isso. Eu falava e até mesmo escrevia sobre vida com Deus, confiava tanto em minha própria fé que me esquecia de quem de fato eu dependia. Curioso é olhar para trás e ver como Deus vem trabalhando. Por muitos anos, Ele simplesmente entregou a chave do carro em minhas mãos… Considerava-me suficientemente boa, suficientemente capaz [1 Co 8.2], fazia de tudo na igreja, envolvia-me com todos e, de fato, eu era muito sincera no meu desejo de servir. Mesmo em minha vida pessoal, sempre tive que correr atrás das coisas que eu queria, do que eu acreditava ser melhor para mim e isso gerou em mim certo censo de independência. Meu erro foi não estar atenta à linha perigosa que eu estava trilhando de ativismo e autossuficiência. No mais íntimo do meu coração, creio que dependência de Deus me dava uma falsa impressão de fraqueza. Apoiei-me em meu próprio conhecimento sem ao menos ter um vislumbre de que tudo o que havia em mim e tudo o que eu tinha conquistado vinha de Deus; e que o orgulho do meu coração tornava-me ineficiente para uma vida legítima diante dEle. Até que um dia, numa primeira marcha mal engatada seguida por uma acelerada impulsiva, bati o carro. Fiz tudo o que eu poderia fazer apoiada em minhas próprias forças para alcançar os objetivos que, sozinha, eu tinha estabelecido para mim. Mas não os alcancei… Foi quando, pela primeira vez, dei-me conta de que o controle não era meu. Sempre ouvi a respeito disso, mas pela primeira vez vivi. E nesse momento, minha própria fé, da qual eu tanto me orgulhava, vacilou. [“A soberba precede a ruína, e a altivez do espírito, a queda.” Pv 16.18]. Na maioria das vezes, nossa natureza só nos permite aprender uma lição quando vivenciada pela dor. E doeu compreender que eu não tinha o controle da minha vida, doeu ver que o que eu julgava importante não era o que Deus tinha para mim, doeu abrir mão das minhas paixões, doeu ver que eu não conseguia sozinha, doeu ver o quanto minha fé era frágil. Doeu. Ali começou um processo na busca de reestabelecer meu coração numa confiança plena em Deus. Não que eu já tenha aprendido a lição completa, mas um coração mais consciente de sua própria condição tem sido forjado. Um coração mais fraco e insuficiente…

Voltando à pergunta inicial, minha resposta ainda é a mesma: existo para a glória de Deus! Mas hoje essas palavras tem tomado vida em minha mente. Atribuo glória a Deus quando Sua imagem é moldada em mim e a matéria prima para essa obra é um coração fraco e insuficiente, que encontra em Deus a força e a suficiência. A Bíblia nos compara a vasos de barro porque são frágeis, guardando o grande tesouro do conhecimento de Cristo [2Co 4.6,7], é isso o que somos, imerecidamente contemplados com a graça de Deus. Com uma concepção correta e sincera de nossa miserável posição face a grandeza do Senhor, temos o que oferecer à Ele para que sejamos transformados por Seu Espírito na obra de santificação [Tg 4.6; 2 Co 3.18], é através da santidade que damos a resposta humana à vocação à qual Deus nos chamou [Ef 4.1]. Tudo o que somos vem do Senhor e isso precisa estar sempre muito presente em nossas mentes: “Não que, por nós mesmos, sejamos capazes de pensar alguma coisa, como se partisse de nós; pelo contrário, a nossa suficiência vem de Deus” [2 Co 3.5]; “… porque sem mim nada podeis fazer” [Jo 15.5].

Apesar de, em muitos momentos, eu ainda precisar lutar contra minha tendência à autossuficiência, tenho encontrado a beleza de me entregar à direção e controle do Senhor. A dependência de Deus, por mais paradoxal que pareça às minhas falhas concepções humanas, é um lugar seguro.  É como uma criança que sai de casa de mãos dadas com seu pai, entra e senta no banco detrás do carro… Ao sentir o motor soar suavemente, reclina a cabeça e cai num sono profundo, pois confia na direção de seu Pai e sabe que ele conhece muito bem o caminho.

“Confie no Senhor de todo o seu coração e não se apóie em seu próprio entendimento” Pv 3.5