Poucas coisas nesse mundo causam-me desgosto. Por assumir uma visão normativamente negativa da humanidade, acredito que a existência e a prática de atos deploráveis são possíveis aos homens, em qualquer época e lugar, religião ou filosofia, por qualquer razão ou falta dela, a quem quer que seja por quem quer que for. E isso é claramente demonstrado na experiência humana, seja nos livros de história ou nas histórias do Datena. Num mundo com claras tendências ao mal, tenho a convicção de que a maldade do homem pode ser manifesta de diferentes modos e a qualquer momento. Entretanto, a questão da luta pela liberdade do aborto me causa um amargo desgosto.

Eu não consigo entender como alguém teria condições morais para defender o aborto como uma questão de liberdade do indivíduo. Eu acredito que para encontrar qualquer consistência nesse tipo de argumento, a insensibilidade da consciência e a desumanização da vida são fundamentais. Entretanto, essas são duas coisas que não consigo fazer.

POR QUE SOU CONTRA O ABORTO

Partindo da cosmovisão cristã, posso afirmar que sou contra o aborto por que eu acredito na dignidade da vida humana, independente do tempo de existência. Tal dignidade é descrita nos termos da criação do homem à imagem e semelhança do Criador (Gn 1:26, 27; 9:6). Não importa qual é o estado de rebelião do indivíduo em relação a Deus, sua vida é ainda marcada pela dignidade derivada da criação. É por isso que o assassinato, em qualquer forma, é deplorável diante dos valores morais do Cristianismo.

Eu sou contra o aborto por que acredito na humanidade da criança não nascida, desde os mais embrionários estágios da vida. As Escrituras tratam da criança não nascida como pessoas (Gn 25:22; Jr 1.5; Sl 22:9-10; 71:6), a ponto de serem consideradas como filhos mesmo antes do seu nascimento (Lc 1.36, 41, 44). Nas Escrituras, a criança não nascida é frequentemente descrita como os mesmos termos que descrevem um criança já nascida, o que sugere que não existe diferença essencial entre elas (Gn 38:27-30; Jo 1:21; 3:3, 11-16; 10:18-19; 31:15; Sl 51:5; Is 49:5; Jr 20:14-18; Os 12:3; Lc 1:15; Rm 9:10-11). É por isso que o aborto é considerado como assassinado do ponto de vista da cosmovisão cristã.

Eu sou contra o aborto por que o sou contra a morte de crianças inocentes. Do ponto de vista do Cristianismo, a morte do inocente é lamentável (Gn 9.6; Ex 23.7; Dt 19.10-11; 27.25; Pv 6.16-19), e no caso do aborto, a criança é penalizada com morte pelo simples fato de existir. Ela não é culpada de sua existência, ainda que em seu nascimento implique em grandes desafios para os seus pais. Do ponto de vista do Cristianismo, a vida é sagrada (Gn 1:26–27; 2:7; Dt 30:15–19; Jo 1:21; Sl 8:5; 1Co 15:26), em especial a vida das crianças (Sl 127:3–5; Lc 18:15–16).

Eu sou contra o aborto por que acredito que o direito a vida da criança não nascida é maior que o direito da liberdade da mãe. A partir do momento que entendemos a criança não nascida como humana, seu direito à vida é superior ao direito da liberdade da mãe. Nas escrituras, o direito da criança é garantido na lei (Dt 14:29; 24:17–21; 26:12–13; cf. 16:11, 14) ao mesmo tempo que o assassinato de crianças não nascidas é visto como o mais desumano e cruel dos atos dos homens ímpios (2Re 8:12; 15:16; Os 10:14–15; Na 3:10; cf. Mt 2:16).

Eu sou contra o aborto por que acredito que a criança não nascida não é parte da constituição do corpo da mãe. Na verdade, a criança não nascida tem um código genético distinto da mãe, um sistema imunológico distinto do da mãe e em muitos casos um tipo sanguíneo e gênero distintos da própria mãe. Nas Escrituras, a criança não nascida nunca é confundida com a mãe, ou apresentada como parte do corpo da mãe.

UMA VISÃO RETRÓGRADA DESDE A ANTIGUIDADE

Talvez você tenha lido até aqui e concluído que a visão cristã da dignidade da vida humana, mesmo em sua forma mais embrionária, seja retrógrada, ultrapassada e sem lugar no diálogo sobre o aborto nos nossos dias. E talvez você tenha razão: O cristianismo defende mesmo uma opinião antiga, ultrapassada e a cada dia que passa tem seu lugar reduzido no diálogo sobre a dignidade da vida humana. Mas, historicamente, nós cristãos estamos acostumados com isso. No que se refere ao chamado “direito” ao aborto, o monoteísmo judaico-cristão é considerado ultrapassado há muito tempo. Nos escritos gregos, os clássicos escritores diziam que o aborto era viável dentro dos seguintes contextos: (1) se a criança apresentasse deformidade ou alguma fragilidade; (2) caso determinado casal tivesse muitos filhos; e (3) quando a mulher engravidasse de uma menina.

De fato, o judaísmo era conhecido no mundo antigo por sua condenação do aborto e do infanticídio. A razão para tal visão da dignidade da vida humana mesmo em seu estágio embrionário, é que o ethos judaico era definido pela Lei Divina, que proibia qualquer tipo de sacrifício de crianças (Ex 13:13; Lv 18:21; 20:1-5; Nm 18:14) e ao mesmo tempo reconhecia que a criança ainda no ventre de sua mãe era um ser humano (Gn 25:22-24; Ex 21:22-25; Jer 1:5). Aliás, de acordo com o AT, o próprio Deus zela pelas crianças e recompensa aqueles que as protegem (Ex.1:15-21; 2:6; Ez 16:3-6).

De igual modo o Cristianismo, também se opôs contra o abandono de crianças, o infanticídio e o aborto. Há diversos documentos da história do cristianismo que registram tal oposição.

OUTRO PONTO DE VISTA, OUTRO MODELO

Independente do motivo, que varia que uma sociedade para outra, o desprezo e descaso pela criança faz parta da história da humanidade. Nos nossos dias, entretanto, a idade com que as matamos, ou as razões que usamos para justificar tal ato, são diferentes, mas o desprezo e o descaso com as crianças continuam entre nós. Alguns defendem que o assassinato de crianças não nascidas seja definido pela liberdade do indivíduo. Em outras palavras, eles querem que a decisão entre vida e morte seja entregue às mães que rejeitam sua maternidade, a indivíduos que valorizam o seu corpo, o seu trabalho, a sua carreira, enquanto desprezam a vida dos seus próprios descendentes. Pessoas cuja consciência ficou insensível a ponto de conseguirem desumanizar a vida dos seus próprios filhos.

Entretanto, o Cristianismo se opõe radicalmente a essa visão de mundo por que o motivo que nos move é o amor. Os cristãos não são apenas convidados a amar o outro, mas a amá-los do mesmo modo que seu Mestre os amou (Jo 13.34-35). Os cristãos são convidados por Cristo a amar aqueles que deles discordam e orar por aqueles que os perseguem (Mt 5.44). Como Jesus Cristo, o Mestre maior dos cristãos, eles valorizam e respeitam as crianças (Mt 19.14; Lc 18.16), porque sabem que quando assim o fazem, eles valorizam e respeitam o próprio Cristo (Mt 18.5). Para o cristão, servir, amar, proteger aqueles que não tem vez ou voz é um ato de amor expresso ao próprio Cristo (Mt 25.35-40). É por isso que os cristãos são contra o aborto, criam orfanatos para cuidar de crianças abandonadas, prestam assistência as crianças nas ruas, prestam assistência a mães que precisam de ajuda e lutam pela voz e o direito das crianças não nascidas. Eles valorizam as Escrituras e acreditam que os valores morais apresentados nela são de fato corretos, em acordo com o exemplo do próprio Cristo.

E o mesmo não é diferente comigo. Eu acredito que as escrituras apresentam os valores morais defendidos por Deus, e com ela afirmo que sou contra o aborto, infanticídio e o abandono de crianças. Pouco me importa se vier a ser rotulado como antiquado, retrógrado ou religioso por aqueles que acredito serem assassinos de crianças ou coniventes com tal atrocidade. Do ponto de vista da cosmovisão cristã, é aqui que me encontro, contra o aborto e em oposição aqueles que o valorizam.

Por Marcelo Berti

Adaptado* por Flórence Franco
Texto original em: https://marceloberti.wordpress.com/2015/08/11/por-que-sou-contra-o-aborto/
* Adaptação autorizada pelo autor.