Parece estar na natureza humana a busca por dominar a si mesmo. Desde o Éden, quando a serpente convenceu Eva de que “seus olhos se abrirão, e vocês serão como Deus, conhecedores do bem e do mal” (Gn 3.5), sua resposta foi comprar a ideia de que ela poderia “ser como Deus”, ou seja, ter domínio sobre si mesma. Então, tomou do fruto e comeu, desobedecendo a Deus e buscando tomar o governo que pertencia ao Senhor. O mais irônico é a consequência de sua atitude: ao invés de tornar-se “senhora de si mesma”, ela se tornou escrava de si mesma, de suas paixões e desejos, fadada a cumprir as vontades de sua carne.

Mesmo assim, a humanidade continuou acreditando que poderia autogovernar-se. Nietzsche, filósofo do século XIX, faz uma proposta semelhante à da serpente “Você deve tornar-se senhor de si mesmo, senhor também de suas próprias virtudes. Antes eram elas os senhores; mas não podem ser mais que seus instrumentos, ao lado de outros instrumentos. Você pode ter domínio sobre o seu pró e o seu contra, e aprender a mostrá-los e novamente guardá-los de acordo com seus fins..

Piaget, psicólogo e filósofo da educação também oferece em seu modelo de desenvolvimento humano um tipo de autogoverno, que chama de “autonomia”. Segundo ele, durante a infância passamos por dois estágios de desenvolvimento moral que precedem a autonomia: a anomia e a heteronomia. No estágio de anomia não sabemos o que é certo e errado, enquanto no estágio da heteronomia começamos a criar esses padrões morais baseados nas reações dos “reguladores externos”: pais, professores, autoridades, etc. e passamos a agir “corretamente” com o único objetivo de não sermos punidos, mesmo sem entender os padrões de certo e errado com precisão. A autonomia, no entanto, seria o último estágio, quando o sujeito saberia tomar decisões morais por si mesmo, controlando suas ações internamente pela moral construída, sem necessidade de um regulador externo.

A ilusão humana de autogovernar-se, porém, acaba sendo frustrada pela realidade do pecado:

Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si; pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém! Por causa disso, os entregou Deus a paixões infames” Romanos 1.24-26a

Jesus respondeu: Digo-lhes a verdade: Todo aquele que vive pecando é escravo do pecado.” João 8.34

Diante dessa realidade, podemos nos perguntar: como um coração pecaminoso e naturalmente inclinado a fazer o mal, escravizado por suas paixões, poderia manifestar domínio próprio? A resposta está na palavra grega egkrateia, que no Novo Testamento aparece traduzida como “domínio próprio”. Ela está elencada entre as virtudes que são fruto do Espírito em Gálatas 5.23:

Por isso digo: vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos da carne. Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam. Mas, se vocês são guiados pelo Espírito, não estão debaixo da lei. Ora, as obras da carne são manifestas: imoralidade sexual, impureza e libertinagem; idolatria e feitiçaria; ódio, discórdia, ciúmes, ira, egoísmo, dissensões, facções e inveja; embriaguez, orgias e coisas semelhantes. Eu os advirto, como antes já os adverti, que os que praticam essas coisas não herdarão o Reino de Deus. Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio. Contra essas coisas não há lei. Os que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e os seus desejos. (Gálatas 5.16-24)

Essa verdade nos aponta para a realidade que somente através da ação do Espírito, por meio da obra redentora de Cristo, podemos manifestar autogoverno. É Deus quem nos capacita a controlar e governar nossas paixões e desejos, porque Ele é o único que tem poder para nos libertar da escravidão da carne e nos tornar livres novamente. Como afirma Jesus em João 8.36 “Portanto, se o Filho os libertar, vocês de fato serão livres.” Livres de quê? De nós mesmas! Do nosso pecado, nossos desejos e paixões.

Podemos observar que, desde o Antigo Testamento, o domínio de si mesmo é valorizado e indicado como sinal de sabedoria. O livro de Provérbios, por exemplo, nos dá os seguintes conselhos: “Como cidade derribada, que não tem muros, assim é o homem que não tem domínio próprio” (Pv 25.28), “Melhor é o longânimo do que o herói de guerra, e o que domina o seu espírito, do que o que toma uma cidade” (Pv 16.32), e até mesmo elogia o procedimento das formigas que “Não tendo chefe, nem oficial, nem comandante, no estio, prepara o seu pão, na sega, ajunta o seu mantimento” (Pv 6.6-8).

Mas, diferente do conceito mundano de autogoverno, que é “ser senhor de si mesmo”, a Bíblia aponta para um governo de si mesmo no sentido de submeter suas vontades à vontade de Deus. Autogovernar-se, portanto, é ser controlado pelo Espírito, desfrutando da liberdade de nós mesmos que adquirimos em Cristo, e, voluntariamente, se submeter à obediência amorosa ao Pai. Esse conceito se diferencia da autonomia de Piaget exatamente por isso: sabemos que quem cria as “regras”, ou melhor, quem define o que é certo e errado não somos nós mesmas, mas sim Deus. Assim, embora Ele mesmo queira que exerçamos autogoverno, nos ensina que sozinhas jamais conseguiremos, pois o pecado maculou perpetuamente nossa moral. Por isso, precisamos sim de um “agente” que nos capacite na mortificação do eu diariamente e nos torne mais santas. Esse agente é Deus, e se manifesta tanto externamente, através das autoridades que atendem à sua soberania e à estrutura criacional, quanto internamente, pois faz morada em nós e nos convence do “pecado, da justiça e do juízo” (Jo 16.8), através do Espírito Santo que nos foi dado.

Por fim, a palavra egkrateia também aparece na epístola de 2 Pedro:

Seu divino poder nos deu todas as coisas de que necessitamos para a vida e para a piedade, por meio do pleno conhecimento daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude. Por intermédio destas ele nos deu as suas grandiosas e preciosas promessas, para que por elas vocês se tornassem participantes da natureza divina e fugissem da corrupção que há no mundo, causada pela cobiça. Por isso mesmo, empenhem-se para acrescentar à sua fé a virtude; à virtude o conhecimento; ao conhecimento o domínio próprio; ao domínio próprio a perseverança; à perseverança a piedade; à piedade a fraternidade; e à fraternidade o amor. Porque, se essas qualidades existirem e estiverem crescendo em suas vidas, elas impedirão que vocês, no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo, sejam inoperantes e improdutivos. (2 Pedro 1.3-8).

Vemos, portanto, que o domínio próprio ou autogoverno é um elemento chave no desenvolvimento da piedade, que é o caráter de Cristo em nós. Sem essa total dependência do Espírito, jamais perseveremos em nossa luta contra o pecado ou em dar frutos. Pelo contrário, o caminho para a maturidade e perfeição passa pelo autogoverno, não no sentido de autonomia descrito por Piaget ou Nietzsche, mas na perspectiva bíblica de submissão da nossa vontade pecaminosa à vontade “boa, perfeita e agradável” de Deus (Rm 12.2).

Em síntese, como vimos em Provérbios, mais importante do que ter poder ou até mesmo conquistas é dominar-se a si mesmo, agir corretamente e disciplinadamente. Temos que reconhecer que Deus colocou autoridades em nossa vida para nos ensinar o que é certo e errado, mas também nos mostrou que nossa obediência deve ser interna e voluntária, uma atitude de autogoverno que demonstra amor a Deus e ao próximo, rendendo-se completamente ao senhorio de Cristo, em dependência do Espírito Santo. Ao invés de desejar desenvolver em nós “autonomia”, Deus usa a heteronomia para desenvolver em nós uma “teonomia”, ou seja, uma submissão às suas leis e vontade, pela qual Ele mesmo nos capacita a obedecer e, assim, dar frutos. Aleluia!