Para o mundo perdido, é fácil ver com clareza o dano do abuso, porque não existe a necessidade de defender o Deus que poderia ter intervindo e terminado com isso. Os cristãos, no entanto, muitas vezes preferem deixar de lado qualquer tópico que possa colocar em dúvida a presença ou a disposição de Deus em agir pelo bem das suas criaturas. A pergunta ‘Onde estava Deus?’ é um pedido legítimo da alma que quer entender o que significa confiar nesse Deus. E se Deus é digno de confiança, Ele pode ser confiado sem nossos esforços de distorcer e negar o passado.” (1)

Meu objetivo com este artigo é, enquanto afirmo a gravidade do abuso, não diminuir o caráter ou simplificar os caminhos de Deus. Há uma grande variedade de livros que cobrem outras versões da nossa pergunta tema, tais como “Por que Deus permite o mal?”. Muitos teólogos se dedicaram a discutir este problema. Meu objetivo aqui hoje não é ser abrangente, mas pensar com você sobre a origem e os efeitos desta pergunta. Ao final do artigo, coloquei sugestões de materiais que você pode ler para responder esta e outras perguntas de maneira mais profunda e completa.

A origem

Quando uma pessoa se faz a pergunta tema deste artigo, suas respostas atingem os sujeitos da frase: “Deus” e “eu”. Se o abuso é algo ruim que Deus permitiu, então seu caráter deve ser falho – Ele não é bom, amor, luz, verdade, soberano. Se Deus passa no teste, ou seja, se você está convencida de que Deus, de fato, é bom, amor, luz, verdade e soberano, então o problema deve ser com você – você não é digna de amor, talvez seja muito pecadora e merecia o que aconteceu com você, ou você pediu por isso. Afirmo categoricamente que nenhuma dessas respostas seja verdadeira. Será que há um terceiro caminho? Creio que sim.

Em primeiro lugar, é preciso afirmar, de novo e de novo, que abuso sexual é pecado, é crime e é imoral. Qualquer pessoa que tente justificar o abuso ou encontrar desculpas ou razões para ele é imoral, está em pecado e cometendo um crime. Essa afirmação só é possível por causa do caráter perfeito de Deus. Como diria C.S. Lewis, você não pode dizer que uma linha está torta se não souber o que é uma linha reta. Se o universo é injusto, quem é justo?

Em seu depoimento contra seu agressor, Rachael Denhollander, baseando-se nesta afirmação de Lewis, disse:

“Eu posso chamar o que você fez de mau e perverso porque foi. E eu sei que foi mau e perverso porque esta linha reta existe. E esta linha não é medida com base na sua percepção ou na de ninguém, e isso significa que posso falar sobre o que aconteceu comigo sem atenuar ou minimizar sua gravidade. Eu sei o que é perverso porque eu sei o que é bom.” (2)

Deus é eterno e perfeito. Ele é a nossa referência do que é bom e justo. É por termos Sua justiça e bondade como referência que podemos avaliar algo como mau e pecaminoso. Pecar vem da palavra hebraica que significa “errar o alvo”. O alvo é a perfeição – e somente Deus a tem.

O ser humano, criado por Deus à sua imagem e semelhança para se relacionar com Ele e para governar a natureza, também era perfeito, até que escolheu inverter as coisas, abandonando seu relacionamento com Deus para governar sobre si mesmo. Assim, tornou-se depravado e até hoje, em orgulho, recusa-se a aceitar a profundidade da sua depravação.

Jesus disse que nosso pecado envolve duas categorias primárias: cobiça e ira (Mateus 5.21-30). O encorajamento final deste trecho do sermão do Monte é: “Sejam perfeitos assim como o vosso Pai celestial é perfeito”.

Apesar de frequentemente pensarmos em cobiça como uma coisa primariamente sexual, prefiro a definição do Dr. Dan Allender, que diz ser a cobiça “o desejo que enlouqueceu”. Desejos podem ser ou não pecaminosos, mas o desejo desenfreado sempre é. Raiva, ou ira, não é apenas se irritar com a atitude de alguém, mas um profundo desejo de ver alguém sofrer por algo que eu sofri, e isto é, de alguma maneira, um tipo de vingança. Ao combinar cobiça e ira, o abuso sexual é uma maneira impactante pela qual o  inimigo obtém sucesso em seus planos de nos afastar de Deus.

Além disso, o abuso sexual é um investimento curto (um abuso pode acontecer em segundos!) cujos resultados são exponenciais – podem durar uma vida toda. O abuso sexual distorce e destrói a realidade da fé, da esperança e do amor. Como diz o Dr. Dan Allender,

“Nenhuma vítima é culpada por ter sido abusada. Mas o abuso provê razões fortes, e histórias potentes, para perguntar ‘Onde estava Deus? Ele me ama? Posso confiar Nele? Se eu posso, em que devo confiar Nele?’ O aspecto diabólico do abuso é que faz o trabalho satânico de enganar as pessoas sobre a natureza verdadeira de Deus e encoraja as vítimas a duvidarem Dele.” (3)

Os efeitos

Eis aqui algumas maneiras pelas quais o abuso afeta nossa percepção de fé, esperança e amor:

  • Fé: a pessoa é levada a pensar “Não posso confiar em ninguém”, incluindo Deus. A vítima passa a viver em estado de hipervigilância. Isso se torna ainda mais compreensível quando lembramos que, em 91% dos casos, a vítima conhece o agressor. Ou seja, no processo do abuso, é necessário que o agressor conquiste a confiança da vítima (o que chamamos de grooming) para depois quebrá-la e usá-la contra a vítima. Assim, a vítima pode vir a pensar que outras pessoas, ou mesmo Deus, não são dignos de confiança.
  • Esperança: A vítima sente que, como “Não havia nada que eu pudesse fazer para parar o abuso, agora não há futuro para mim”. A vítima não consegue ver além da dor, vê-se sem esperança, vive em desespero. O abuso distorce de tal maneira a percepção de si, de Deus e dos outros, que uma vergonha (ainda que ilegítima) toma conta da pessoa e a leva ao desespero sobre si e tudo mais.
  • Amor: O abuso cria uma sensação de que amar é muito perigoso, de que se conectar com alguém, dar e receber honra, alegria e prazer, é um risco muito alto que não vale a pena de ser vivido. A pessoa pode acabar com uma atitude do tipo “Vou me relacionar com outras pessoas, mas não vou permitir que isso afete minhas emoções ou se enraíze em meu coração.”

O resultado é uma pessoa que vive envergonhada, desconfiada, desesperançada e desconectada.

A verdadeira resposta

A resposta para o problema do mal, e o abuso é mal em sua natureza e prática, é o próprio Cristo. Denhollander diz:

“Apenas a fé cristã apresenta um Deus cujo amor que nunca falha é grande o suficiente para trazer justiça, sempre, ao ponto de tomar sobre Si esta justiça, para permitir que haja perdão. Quando minha inocência foi roubada quando criança, ambas as vezes, Deus viu aquele dano e disse ‘Isto é perverso e isso importa pra mim’. O que aconteceu comigo importa, e é visto, e é ouvido, e Alguém estava cuidando de mim, mesmo quando ninguém mais o fez.” (4)

Eis a resposta das Escrituras frente ao abuso:

  • Deus odeia o mal: A Bíblia é tão contrária ao abuso que diz ser melhor se suicidar do que praticá-lo. E as Escrituras também são contrárias ao suicídio. Compreenda a gravidade.

“O Senhor prova o justo, mas o ímpio e a quem ama a injustiça, a sua alma odeia. Sobre os ímpios ele fará chover brasas ardentes e enxofre incandescente; vento ressecante é o que terão. Pois o Senhor é justo, e ama a justiça; os retos verão a sua face.” (Salmo 11:5-7)

“Mas se alguém fizer tropeçar um destes pequeninos que creem em mim, melhor lhe seria amarrar uma pedra de moinho no pescoço e se afogar nas profundezas do mar. Ai do mundo, por causa das coisas que fazem tropeçar! É inevitável que tais coisas aconteçam, mas ai daquele por meio de quem elas acontecem! Se a sua mão ou o seu pé o fizerem tropeçar, corte-os e jogue-os fora. É melhor entrar na vida mutilado ou aleijado do que, tendo as duas mãos ou os dois pés, ser lançado no fogo eterno. E se o seu olho o fizer tropeçar, arranque-o e jogue-o fora. É melhor entrar na vida com um só olho do que, tendo os dois olhos, ser lançado no fogo do inferno.” (Mateus 18:6-9)

  • Deus é justo e age em favor da justiça: Um dia, haverá um julgamento onde a ira de Deus e o terror eterno serão derramados sobre os que praticam perversidades tais como abuso sexual. Nossa visão da ira de Deus normalmente é negativa, mas precisamos entender que da mesma maneira que desejamos justiça pelas atrocidades cometidas contra nós e contra outros, a realidade do amor de Deus implica que Ele deseja essa mesma justiça.

“O Senhor faz justiça e defende a causa dos oprimidos.” (Salmo 103.6 e 146.7)

“Assim como o joio é colhido e queimado no fogo, assim também acontecerá no fim desta era. O Filho do homem enviará os seus anjos, e eles tirarão do seu Reino tudo o que faz tropeçar e todos os que praticam o mal. Eles os lançarão na fornalha ardente, onde haverá choro e ranger de dentes.” Mateus 13:40-42

É justo da parte de Deus retribuir com tribulação aos que lhes causam tribulação, e dar alívio a vocês, que estão sendo atribulados, e a nós também. Isso acontecerá quando o Senhor Jesus for revelado lá do céu, com os seus anjos poderosos, em meio a chamas flamejantes. Ele punirá os que não conhecem a Deus e os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Eles sofrerão a pena de destruição eterna, a separação da presença do Senhor e da majestade do seu poder.” 2 Tessalonicenses 1:6-9

  • Deus nos ama: A Bíblia define amor sacrificial como aquele pelo qual Deus se tornou homem e veio ao mundo pagar a penalidade de um pecado que Ele não cometeu. Por causa Dele, nós podemos conhecer o amor.

“De fato, no devido tempo, quando ainda éramos fracos, Cristo morreu pelos ímpios. Dificilmente haverá alguém que morra por um justo; pelo homem bom talvez alguém tenha coragem de morrer. Mas Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores. Como agora fomos justificados por seu sangue, muito mais ainda seremos salvos da ira de Deus por meio dele! Se quando éramos inimigos de Deus fomos reconciliados com ele mediante a morte de seu Filho, quanto mais agora, tendo sido reconciliados, seremos salvos por sua vida!” (Romanos 5:6-10)

“Foi assim que Deus manifestou o seu amor entre nós: enviou o seu Filho Unigênito ao mundo, para que pudéssemos viver por meio dele. Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou seu Filho como propiciação pelos nossos pecados.” (1 João 4:9,10)

  • Sem arrependimento, não há perdão para o agressor: As Escrituras afirmam que arrependimento é fruto de enfrentar e reconhecer a verdade sobre o pecado, neste caso o abuso, como um ato de total depravação e horror que não tem atenuantes, não aceita desculpas nem pode ser apagado com boas obras.

“Se, porém, não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis.” (Lucas 13.3)

Eles precisam converter-se a Deus com arrependimento e fé em nosso Senhor Jesus.” (Atos 20:21)

“A tristeza segundo Deus produz um arrependimento que leva à salvação e não remorso, mas a tristeza segundo o mundo produz morte. Vejam o que esta tristeza segundo Deus produziu em vocês: que dedicação, que desculpas, que indignação, que temor, que saudade, que preocupação, que desejo de ver a justiça feita! Em tudo vocês se mostraram inocentes a esse respeito.” (2 Coríntios 7:8-10)

  • Ainda que os agressores venham a se encontrar com Cristo e receber essa graça e misericórdia por meio da salvação pela fé (o sacrifício de Cristo na cruz foi suficiente para pagar o preço da ira de Deus contra toda sorte de pecado, incluindo o abuso sexual), isso não implica que a justiça humana deva ser abandonada. A Bíblia é clara que devemos obedecer as autoridades e, por ser o abuso não apenas pecado, mas crime, o agressor deve ser condenado e punido de acordo com a lei.

Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas. Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se opondo contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação sobre si mesmos.” (Romanos 13.1.2)

Há muito mais que poderia ser dito. Mas oro a Deus que lhe oriente no processo de entender com profundidade a realidade e as verdades compartilhadas aqui. Desejo que os próprios versículos acima te levem a uma conclusão. Caso deseje mais orientação sobre o assunto do sofrimento e nosso relacionamento com Deus, sugiro os seguintes recursos:

  • Dr. Jerry Bridges. Confiando em Deus – mesmo quando a vida nos golpeia, aflige e fere. Nutra Publicações.
  • C.S. Lewis. O Problema do Sofrimento. Editora Vida.

  • Timothy Keller. Caminhando com Deus em Meio à Dor e ao Sofrimento. Editora Vida Nova.
  • John Piper e Justin Taylor. Sofrimento e a Soberania de Deus. Editora Cultura Cristã.
  • Steve Viars. Colocando o Seu Passado no Devido Lugar. Nutra Publicações.

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  1. Dr. Dan B. Allender. A Wounded Heart. P. 26.
  2. Full Statement of Rachael Denhollander. Disponível em : https://www.cnn.com/2018/01/24/us/rachael-denhollander-full-statement/index.html
  3. Allender. Ibid.
  4. Interview with Rachael Denhollander. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kzo9puAB9LQ