Tenho vagas lembranças. Na minha mente pairam lapsos de memórias que não me permitem esquecer daqueles momentos. Era uma tarde qualquer, de um dia qualquer. Eu tinha quatro ou cinco anos, estava sozinha em casa assistindo televisão quando o interfone tocou. Uma voz desconhecida soou do outro lado mandando-me descer. Ele fez algumas ameaças. Confusa e completamente ingênua, sem entender o que estava acontecendo, eu desci. Ele me levou para um lugar escondido e pediu para que eu tirasse roupa…

Uma criança que sofre abuso tem sua sexualidade despertada precocemente. Os danos em sua mente são profundos. Sua maneira de enxergar a vida, que deveria ser delineada vagarosamente em cada experiência, em cada aprendizado, são corrompidos por informações que não deveriam estar ali, que foram introduzidas com violência e de forma dolorida.

Por quê? Por que Deus permitiu que algo assim acontecesse comigo? Por que comigo? São questões que já invadiram meus pensamentos. Poderia ter sido diferente, queria ter crescido com uma mente pura, queria ter me tornado uma adolescente normal, queria olhar para o mundo por lentes ingênuas até que chegasse o tempo da ingenuidade acabar. Eu não escolhi ter minha inocência rompida tão cedo. Mas não foi assim que aconteceu. Tudo o que tinha era minha história. Eu tinha que lidar com o fatos tais como aconteceram e nada podia ser diferente. Eu tinha duas opções: ficar revoltada contra Deus e me tornar uma pessoa amarga, inconformada e cheia de traumas, ou render-me ao Deus de graça que um dia me resgatou da minha sujeira e que sempre esteve comigo, até mesmo na escuridão daquela tarde.

Escolhi a segunda opção. Aprendi que este mundo é afundado em trevas e que, por causa do pecado, as pessoas são más. Não há um justo, nem um sequer (Rm 3.10). Eu nasci em pecado (Sl 51.5), tão carente do perdão de Deus como aquele homem. Eu entendi que o pecado de outros podem nos machucar profundamente e que aquela não foi a primeira e nem seria a última vez que isso aconteceria. Deus não impediu aquele momento de acontecer assim como Ele não te impede de contar uma mentira, de ter pensamentos impuros ou de se orgulhar de si mesmo. Precisamos mudar nossa perspectiva de análise. Todos nós somos os ofensores, escolhemos o pecado e Deus, na sua paciência e misericórdia, está nos dando tempo para que haja arrependimento (At 17.30,1 Pe 3.20, Ap 2.21). Ele não nos impede de pecar mas requer de nós uma vida de santidade (Ef 5.18, 1 Ts 4.3) que, na dependência do Espírito Santo, nos é possível e que, à parte dEle, nos levará à ruína. Santidade que é requerida daqueles que foram salvos e que não faz sentido à alguém que não conhece a Cristo verdadeiramente. Um dia eu entendi a graça. Um dia eu chorei amargamente o meu pecado, porque antes de tudo, era uma sujeira sórdida em minhas mãos que manchava a comunhão com o Autor da minha vida, da minha fé, da minha salvação. E por tudo isso, eu entendi que antes de ser uma ofensa contra mim, o pecado daquele homem foi uma ofensa contra o meu Deus e que ele carece dessa graça que me constrangeu a perdoar uma dívida muito pequena em face daquela que me foi perdoada pelo meu Senhor (Lc 7.36-50).

Nossa vida não é sobre nós mesmos (At 20.24), não é uma saga de vinganças e ressentimentos contra quem nos fere (Ef 4.30-32), nem mesmo sobre um final feliz que nós achamos que encontraremos em coisas vãs. Nossa vida é sobre trazer glória ao Único digno, ao Rei eterno e imortal, invisível e real que nos amou e concedeu-nos seu perdão para que livremente perdoássemos uns aos outros e vivêssemos em amor (Rm 12.10). Graça sobre graça (Jo 1.16)! Quando somos tomados por essa verdade contida na Palavra de Deus, não há espaço para amargura ou ressentimento. Fui alcançada pela graça, e essa é a história da minha vida.

Por Amanda Albuquerque*

*Nome fictício por questões de privacidade.