A pessoa que passa pelo abuso sexual sabe, assim que ele acontece, que as coisas serão diferentes dali pra frente. Porque o abuso é uma quebra de confiança, que rouba de alguém sua vontade e desconsidera suas emoções, é comum que os resultados do abuso afetem estas três áreas: seus relacionamentos, sua volição e suas emoções. Assim, todo abuso é uma violação do caráter sagrado e da integridade da alma humana.

Em várias passagens bíblicas, o abuso sexual é mencionado como emocionalmente traumático – 2 Samuel 13, Oséias 2.1-13, Jeremias 13.20-27, Ezequiel 16 e 23 demonstram um entendimento de que tais atos não apenas resultam em trauma, mas também em humilhação e perda de identidade.

A Bíblia chama o abuso sexual de pecado – uma violação da lei divina – em Deuteronômio 22.23-31. A passagem não é das mais fáceis de explicar, mas algumas verdades são inquestionáveis. Há três cenários aqui:

  • v. 23-24: Um homem e uma mulher, prometida em casamento a outro homem, que se envolvem sexualmente. O caso ocorre (provavelmente) em uma cidade populosa, ou seja, se fosse uma tentativa de estupro, ela poderia gritar e ser ouvida, mas não o fez, o que implica consenso e, por isso, ela também é responsável. Além disso, o termo hebraico aqui é matsa, ou seja, ele a “achou” – não há indicação de força da parte do homem ou de resistência da parte da mulher (ela não gritou), logo, como ela está prometida em casamento, o caso é tratado como adultério (Dt. 22.22).
  • v. 25-27: Um estupro (v.25-27) – uma mulher prometida em casamento é encontrada após ser violada por um homem no campo, ou seja, longe de qualquer auxílio. O termo no texto é o verbo hebraico chazaq (forçar), que explica a violência com que o ato sexual foi cometido – ele indica uso de força coercitiva, ou seja, estupro. Em dois casos descritos nas Escrituras posteriormente, o da concubina (Jz. 19) e o de Tamar  (2 Sm 13), a palavra chazaq é usada. Assim, presume-se a inocência da virgem (que ainda não foi prometida em casamento) que “gritou” mas “não houve quem a livrasse”. A Bíblia reconhece aqui duas verdades: o estupro é um crime violento e merece a mesma punição que o homicídio – a morte (“apenas o homem que deitou-se com ela deve morrer”); e a vítima não é culpada de nada (“não façam nada com ela, pois não houve pecado”). Outro aspecto interessante da lei é que ela afirma que a mulher deveria ser acreditada com base em sua palavra – apesar da ausência de testemunhas. Ela foi ouvida e acreditada. Ela foi protegida por sua comunidade.
  • v. 28-29: Um homem se deita com uma mulher ainda não prometida em casamento. Talvez o caso mais complicado do trecho, mas há algumas indicações importantes no texto. Em primeiro lugar, o verbo aqui é taphas, que pode significar captura ou conquista (2 Rs 14.13). Em segundo lugar, a mulher está solteira e não há especificação de onde eles foram encontrados. A linguagem do texto também aponta para uma certa mutualidade na responsabilidade, “eles foram apanhados” (v. 28), que é diferente do caso anterior, onde só a moça é encontrada. O autor poderia usar a mesma palavra do trecho anterior, chazaq, que indica violência física, ou seja, um estupro. No entanto, o Espírito Santo inspirou outra palavra no hebraico, taphas. Eles são descobertos enquanto ainda juntos. Neste caso, apesar de a jovem ter sido seduzida e desonrada, a existência desta mutualidade implica responsabilidade para o homem em ter que casar com ela, pagar o preço do dote (ou seja, tirando-lhe condições de casar-se com outra), e nunca poder divorciá-la. Mas veja só, não há penalidade para a jovem – ela não deve ser maltratada pela sociedade ou abandonada por sua família, mas absolvida, e sua honra restaurada. Assim, de acordo com a lei, um homem não pode usar de uma jovem sexualmente como seu objeto de prazer e então abandoná-la. Deus, aqui, protege a jovem de ficar desprotegida e desprovida, e ensina os homens que mulheres não devem ser usadas e descartadas.(1)

Logo, o processo que deveria acontecer, de acordo com as Escrituras, após um crime de abuso sexual é o de punição do agressor e cuidado da vítima. Infelizmente este não tem sido o caso – nem nos nossos dias, nem no passado. Frequentemente, a punição recai sobre a vítima. Veja o caso de Tamar. 

Como Não Agir

O caso de Tamar (2 Sm 13) talvez seja uma das histórias mais tristes das Escrituras. São diversos os motivos. Se você não conhece a história, deixe-me relatá-la à luz das informações que trouxe a vocês nos últimos artigos. 

Tamar era uma das filhas de Davi, e seu irmão, Amnom, desejava-a sexualmente a ponto de se fazer adoecer por causa disso. Ouvindo os maus conselhos de um amigo, Amnom planeja uma maneira de trazer Tamar aos seus cômodos debaixo dos olhos de todos! Veja aqui, em primeiro lugar, como o abuso não é algo que acontece, mas que é planejado, e não necessariamente escondido. Ele é fruto de uma decisão vil de agir contra a integridade de alguém e pode acontecer em qualquer lugar.

Em segundo lugar, não houve quem a protegesse. Amnom pede a Davi acesso à sua irmã e Davi concede. Davi pode ter achado o pedido estranho, mas ele não vê os sinais, não considera os limites sendo distorcidos. Em seguida, assim que Amnom consegue que Tamar entre em seus aposentos, ele elimina qualquer aparência de propriedade da situação – expulsa os empregados para que eles fiquem sozinhos. Aqui há outra dinâmica de poder que afeta os que estão próximos à situação: o príncipe consegue que as pessoas, ignorando suas próprias ideias sobre a situação, saiam do ambiente e desviem os olhos da impropriedade do que está pra acontecer e do perigo que Tamar corre. Eles temem mais por si do que por Tamar – eles escolhem proteger a si mesmos. Eles são os primeiros a ficar em silêncio frente ao mal.

Assim que Tamar percebe o risco que está correndo, reage contra seu meio-irmão dizendo “Não me faça essa violência. Não se faz uma coisa dessas em Israel. Não cometa essa loucura.” (v.12) Há também um comentário sobre Amnom – “Você cairia em desgraça em Israel” (v.13) – que você consegue entender à luz da passagem que observamos na introdução. 

No entanto, seus argumentos são inúteis frente à maldade de Amnom e ele a estupra. Isso prova que o abuso sexual não é uma questão de desejo sexual. Se fosse uma questão de desejo, Amnom teria ouvido Tamar e teria casado com ela. Mas ele não a ouviu. Ele a violou e, em seguida, a rejeitou completamente. Tenho vontade de chorar com a resposta de Tamar: ela põe cinzas sobre sua cabeça, rasga sua túnica, prova de sua virgindade, e sai chorando em alta voz. 

Infelizmente, o abuso de Tamar não termina aí. Absalão, outro de seus irmãos, logo descobre o que aconteceu, mas ao invés de denunciar Amnom publicamente, incentiva Tamar a ficar quieta e a “não se deixar dominar pela angústia.” Veja como seu clamor por justiça é silenciado, e sua dor completamente desconsiderada. Davi, seu pai, também ouve o que aconteceu e, apesar de ficar indignado, não faz nada. Tamar não é absolvida, protegida ou sua honra restaurada. Não há nenhuma denúncia pública do pecado de Amnom, não há justiça! Tamar é forçada a esconder-se com sua dor na casa de seu irmão Absalão. Sua pergunta “Aonde iria eu com a minha vergonha?” encontra resposta – a lugar nenhum.

Absalão ficou em silêncio. Davi ficou em silêncio. E essa é a realidade para a maioria das vítimas de abuso: elas se sentem incapacitadas frente ao abuso de poder, silenciadas independente de sua eloquência e tratadas com um desdém imerecido. Alguém, no entanto, decidiu falar publicamente sobre o ocorrido e registrá-lo num livro que seria lido mais de dois mil anos depois. Não apenas a história de Tamar, mas a de Bate-seba (2 Sm 11), a de Diná (Gn 34), a da concubina (Jz 19-20)… O abuso sexual não é algo novo na história da humanidade – era comum desde antes da Lei Mosaica ser registrada e, como vimos na introdução, a lei fez provisão para a vítima.

A história termina com Absalão matando Amnom, por razões pessoais – ele o odiava pelo que fizeram com sua irmã Tamar – mas também políticas – ele queria o lugar de Amnom na linha de sucessão ao trono – e Absalão morre não muito depois. Tamar some nas páginas seguintes. Por que, então, aprouve Deus contar a história de Tamar e de tantas outras mulheres? Por que os escritores bíblicos não evitaram falar sobre o assunto? Por que eles registraram casos tão vis com respostas tão pecaminosas daqueles que deveriam aplicar justiça? Creio que Deus tinha um desejo em mente: Ele queria que soubéssemos que Ele ouve, Ele vê e Ele age com justiça. Na cruz, Ele fez justiça por cada sofrimento que nós passamos e passaremos. Na cruz, Ele tomou sobre Si a nossa dor. Na cruz, nossas feridas podem ser curadas (Isaías 53.4-5). 

Como Agir

“Liberte os que estão sendo levado para a morte; socorra os que caminham trêmulos para a matança! Mesmo que você diga: “Não sabíamos o que estava acontecendo!” Não o perceberia aquele que pesa os corações? Não o saberia aquele que preserva a sua vida? Não retribuirá ele a cada um segundo o seu procedimento?” (Provérbios 24.11,12)

Como podemos reagir, então, quando alguém compartilha conosco sua história de abuso?

Em primeiro lugar, acredite em sua história. É necessário muita coragem para contar para alguém sobre o que aconteceu consigo. Se alguém confiou a você sua história, acredite na pessoa e agradeça a ela pela confiança. Ainda que a história pareça desconexa ou o (a) agressor (a) seja alguém em quem você confie, sua responsabilidade não é investigar, mas dar suporte. O fato de 91% das histórias de abuso serem comprovadamente verdadeiras deveria ajudar-nos a acreditar. Se o fato for falso, a verdade virá à tona. No entanto, a triste realidade é que mais casos são ocultados do que revelados, então se alguém tomou coragem de revelar, dê suporte. Não pense que a ausência de choro seja sinal de que o fato não ocorreu. Lembre-se que as pessoas reagem diferentemente a diferentes pessoas em diferentes épocas. Ela pode não chorar com você hoje, mas talvez o faça amanhã, ou com outra pessoa. Apenas acredite na história e deixe que Deus traga luz. Afirme sempre que necessário “Eu acredito em você” e parabenize-a pela coragem de compartilhar sua história.

Concorde que o ocorrido é uma atrocidade diante dos olhos de Deus. Afirme que isso não deveria ter acontecido com ela, que Deus sofre conosco quando o pecado de alguém nos machuca, e entristeça-se com ela. Demonstre o quanto isso machuca o coração de Deus, permita-se chorar com ela, se sentir o desejo. Frases como “Eu reconheço que isso deve ser muito difícil para você” ou “sinto muito que você tenha passado por isso” demonstram empatia. Evite expressões de falsa empatia como “eu sei o que você está sentindo”. Ainda que você também seja uma sobrevivente de abuso, a situação é outra, o agressor pode ser outro e cada pessoa sente dor por uma razão diferente. Também não conte a sua história de abuso ou a de alguém que você conhece. Talvez esse momento chegue no futuro, talvez ela nunca esteja disposta a ouvir. O momento é dela. Ouça.

Não faça julgamentos. Se acreditarmos na mídia, pensaremos que todo abuso ocorre num contexto de vulnerabilidade – ela bebeu ou estava sozinha na balada, decidiu andar por uma área perigosa da cidade ou usou roupas imodestas, a lista é longa. A verdade é que esses contextos estão presentes em menos de 10% dos casos. Ainda que sejam parte da história, não justificam o abuso. NADA justifica um abuso. A culpa nunca é da vítima. Afirmações como “Não foi sua culpa” ou “Você não fez nada para merecer isso” encorajam a pessoa a parar de se culpar, o que é comum em 100% dos sobreviventes. Caso atitudes imprudentes ou até mesmo pecaminosas tenham precedido o crime, apenas uma pessoa treinada em aconselhamento de trauma saberá orientar a pessoa a separar as duas situações. Sua responsabilidade para com sua amiga é estar ao lado dela.

Reconheça que essa experiência afetou a vida da pessoa. Os casos de transtorno pós-traumático em vítimas de abuso sexual só são superados em número pelos de sobreviventes de guerra. As reações a memórias visuais, auditivas, olfativas e táteis podem ir de incômodas a aterrorizantes. Algumas pessoas sofrem por anos sem pedir ajuda, outras aprendem a conviver com a memória mais rapidamente ou buscam ajuda mais rápido. A verdade é que a memória sempre estará presente, mas um dia ela poderá não afetar o presente de maneira tão profunda. Sobreviventes podem apresentar depressão, memórias vívidas do passado, ansiedade ou medo. Algumas desenvolvem desordens emocionais (anorexia, bulimia, auto-flagelamento, insônia, dissociação, etc.)(3). Algumas pessoas têm desejos suicidas. Há também os efeitos físicos, como doenças sexualmente transmissíveis, perdas ou feridas resultantes da violência cometida contra elas, até mesmo gravidez. Não existe tempo limite para a recuperação, mas quanto mais cedo a pessoa encontrar auxílio, mais cedo ela poderá encontrar vida abundante em Jesus. 

Lembre-a de que ela não está sozinha, e esteja presente. Afirme em alto e bom som: “Você não está sozinha.” Não apenas Deus está presente para consolá-la, mas agora ela também tem a você. “Eu me importo com você e estou aqui para ouvi-la ou ajudá-la da maneira que puder.” E então indique quão disponível você pode estar – se ela pode ligar, mandar mensagem ou aparecer na sua casa a qualquer hora, ou se há limites, como por exemplo você não poder ajudá-la nos seus horários de trabalho. Nossa tendência de dizer “estou aqui para o que você precisar” seguida de ligações não atendidas e mensagens esquecidas não ajudam em nada. A pessoa que está lutando para confiar de novo precisa saber que você se manterá firme em sua palavra. Se necessário, estabeleça os limites: “Quero te dar o suporte que eu puder, mas não posso atender meu telefone durante o trabalho. Se você quiser falar comigo, me mande uma mensagem e te ligarei assim que puder.” Esse tipo de mensagem comunica interesse e confiabilidade. E então, quando ela mandar mensagem, ligue.

Reconheça seus limites. Ainda que você seja a pessoa para a qual ela tenha contado sua história, há um limite no quanto você pode ajudar. Recomendar que ela fale com um pastor ou líder de sua igreja pode ser útil, mas se eles não tiverem treinamento e habilidade para lidar com vítimas de abuso, o aconselhamento errado pode adicionar um novo trauma. Infelizmente o legado das igrejas evangélicas em tratar os casos de abuso não tem sido muito positivo. Tentativas de “resolver o problema” dentro da igreja, ao invés de denunciar à polícia, ou encorajamentos à vítima a perdoar o agressor que eliminam a necessidade deste ser levado à justiça apenas mostram a falta de discernimento e treinamento de vários ministros e líderes religiosos. Cada sobrevivente terá um caminho diferente a seguir, mas cabe a um profissional treinado em aconselhamento de vítimas de abuso (preferencialmente  um pastor ou um conselheiro bíblico treinado) a orientação técnica. 

Informe-se sobre os recursos disponíveis na sua área. Veja se existe um grupo de apoio para sobreviventes de abuso sexual, quais conselheiros cristãos ou pastores da área têm treinamento em trauma, ou até mesmo o número da linha de prevenção ao suicídio (uma consideração comum entre vítimas). Encontre também atividades de auto-cuidado ou lazer disponíveis na área – é comum que sobreviventes se isolem ou deixem de cuidar de si mesmas. Ofereça-se para ir junto.

Acima de tudo, orem juntas. “Muito pode pela sua eficácia a súplica do justo.” (Tg 5.16). A cura que precisa acontecer no coração de sua amiga pode ser encorajada pelo seu apoio, mas apenas será efetuada pelo Espírito Santo de Deus em seu coração. Por isso, ore.

__________________________________

  1. Baseado em Katie McCoy, What does the Bible say about sexual assault? Disponível em: www.erlc.com/resource-library/articles/what-does-the-bible-say-about-sexual-assault 
  2. Dr. Dan Allender. A Wounded Heart. P. 113

Quero fazer uma pausa aqui para observar que nem toda resposta ao sofrimento é correta ou santa, ainda que pareça “fazer sentido”. Uma pessoa que foi violada possivelmente reagirá pecaminosamente. O livro “Colocando o seu passado no devido lugar”, de Stephen Viars (Nutra Publicações) pode ser um grande auxílio nesse processo de reconhecimento de pecado e cura.