Outro dia, depois de uma caminhada permeada de conversas sobre justiça e política, minha amiga perguntou, “mas se essas ideias (i.e. socialismo/marxismo/feminismo) são nocivas, qual caminho seguir?” Se vamos recusar a teoria crítica como guia no nosso modo de pensar e agir, precisamos de um guia novo: a Bíblia. As mídias e os centros de ensino estão permeados pela teoria crítica que temos estudado e, se não estivermos atentas, poderemos falhar em amar ao nosso próximo com Deus nos ama. 

Aquele que criou o Universo e as pessoas que nele habitam sabe muito mais sobre como eles funcionam do que nós, por isso precisamos lembrar do Provérbio: “Confie no Senhor de todo o seu coração e não se apóie em seu próprio entendimento.” (Pv 3:5) 

Enquanto a teoria crítica pode nos ajudar a entender problemas reais, não pode oferecer uma solução real, porque interpreta problemas a partir de uma ótica contrária à ótica bíblica e, portanto, suas soluções não podem ser bíblicas. Não deixemos de lembrar dos seguintes princípios fundamentais: 

  1. Todo ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1:27)
  2. Todo ser humano é pecador (Romanos 3:23)

Um exemplo: a escravidão e as relações de cor/raça

A história nos ensina sobre os incalculáveis efeitos físicos, emocionais, sociais, psicológicos e espirituais da escravidão na vida dos escravos e seus descendentes. O Brasil foi o país com maior número de escravos trazidos da África – uma estimativa de 4.9 milhões de escravos entre 1501 e 1866, cerca de 40% do total de africanos vendidos a outros países. Ler as narrativas deste período de nossa história não é uma tarefa para os fracos. 

A escravidão na África e no Oriente Médio estava frequentemente ligada à guerra entre grupos rivais – vemos isto claramente no relato bíblico, por exemplo, quando os israelitas são exilados e/ou escravizados quando derrotados em batalhas. Isto também aconteceu quando muitos dos escravos enviados no mercado internacional eram vendidos por tribos africanas rivais que, causando guerras e conflitos, capturavam seus “inimigos” e usavam o mercado escravo se enriquecer. 

A escravidão descrita na lei hebraica era mais uma “servidão contratada” (Êx. 21:1-11, Dt 15:12-17), já que os escravos eram vistos como parte essencial do lar hebreu e deveriam ser bem tratados. Não existe ordem bíblica para a posse de escravos, mas considerando isso parte da realidade bélica da época, algumas das leis (i.e. Deuteronômio 21:12-13) buscavam minimizar essa ocorrência, e a brutalidade com que isso acontecia. Uma lei em Deuteronômio 23:15-16, por exemplo, diz que um escravo fugitivo não deveria ser entregue de volta ao seu senhor, mas tratado bem e permitido viver onde quisesse. Até mesmo para com os escravos de guerra a ordem é que o escravo não fosse tratado “com rigor”, mas com temor a Deus (Lv. 25:43).

Veja que, enquanto a sociedade israelita permitia a escravidão, a dominação total de um ser humano pelo outro, como aconteceu no Brasil e nos Estados Unidos nos séculos 15 a 18, nunca foi aceita. Aqui, no entanto, não havia qualquer provisão legal de direito para os escravos africanos, nem antes nem depois da abolição. 

À medida que as leis foram sendo mudadas no Brasil, a importação de escravos africanos diminuiu até encerrar e, posteriormente, a escravidão foi “abolida”. No entanto, esta “libertação” trouxe outros problemas. O desrespeito e o preconceito contra os ex-escravos somados aos anos de relações opressoras levou a maioria dos empregadores – os fazendeiros – a pagar mão-de-obra imigrante ao invés de contratar os ex-escravos, criando um problema severo para essa população tanto no sustento quanto na inclusão.

Infelizmente, muitos dos donos de escravos eram ou se chamavam cristãos, usando da menção da escravidão na Bíblia para validar suas práticas, ainda que opressoras. As Escrituras nunca nos dão permissão de maltratar ou desrespeitar outro ser humano porque somos todos feitos à imagem e semelhança de Deus. A ordem bíblica, na verdade, é contrária a isso: “Como vocês querem que os outros lhes façam, façam também vocês a eles.” (Lucas 6:31). Somos chamados a tratar os vulneráveis como se fosse a Cristo (Mateus 25:35-40). Mas porque somos todos pecadores, muitos de nós deixam de lado a obediência a Deus para atender aos nossos próprios interesses, desrespeitando e oprimindo aqueles, assim como nós, são feitos à imagem de Deus.

A escravidão legal dos africanos encerrou-se em 1888, mas os efeitos permanecem. A desigualdade financeira e a desconsideração do sistema legal para com essa população afetou severamente a configuração da população brasileira – tanto em cor, quanto em cultura, riqueza e relacionamento. A maioria da população descendente de escravos tem cor da pele preta ou parda em vários tons, resultado da mestiçagem no país. A pobreza resultante da escravidão e os males decorrentes desta pobreza contribuíram para uma visão de cor do ser humano que é depreciativa. A pessoa de pele mais clara, ou branca, é mais frequentemente associada às classes mais altas da sociedade, enquanto a pessoa de pele mais escura, parda ou preta, às classes mais baixas e aos problemas decorrentes da pobreza (violência, analfabetismo, etc), e se, de acordo com o IBGE(1), 46,8% da população se considera parda e 9,4% como preta, podemos ver como conversas sobre desigualdade, violência e pobreza estarão permeadas por questões étnicas e de cor, ou raça.

Como a resposta da teoria crítica contemporânea e a resposta bíblica diferenciam?

Racismo é uma crença que geralmente envolve a ideia de que uma raça (a própria) é superior e tem o direito de dominar sobre as outras, ou que um grupo racial em particular é inferior aos outros. Ainda que a Bíblia não use o termo “racismo”, vemos princípios que abordam este tema.

O racismo é ofensivo a Deus pelo fato que qualquer ofensa a um ser humano criado à imagem de Deus é ofensa ao próprio Deus. Por isso, podemos discordar e rejeitar a teoria crítica contemporânea e ainda assim afirmar que o racismo é real – e danoso. No entanto, enquanto o pecado da parcialidade baseada em raça existe, ele não é tão pervasivo (ou sistêmico) a ponto de estar em todo lugar, como eles afirmam. Podemos dividir o racismo em dois tipos: racismo interpessoal e racismo institucional. 

Racismo interpessoal é quando esta parcialidade baseada em raça é expressa numa relação entre indivíduos, resultante dos pensamentos, preconceitos e ações de um indivíduo, que colocam alguém em vantagem ou desvantagem devido a sua raça/cor. Racismo institucional é quando esta parcialidade é expressa por meio de leis, políticas e práticas em negócios, escolas, igrejas e instituições governamentais – ou seja, quando pecadores colaboram para tornar seu pecado em práticas não ditas ou políticas (não) escritas, que podem resultar em favoritismo ou desvantagens inapropriadas. Essas leis, políticas e práticas resultam em uma violação dos padrões divinos de justiça (i.e. roubo, assassinato, julgamento baseado em padrões diferentes). É nessas situações que indivíduos corajosos podem se levantar contra o sistema para seguir os padrões de justiça divinos.

O racismo interpessoal envolve os seguintes pecados:

  • Favoritismo ético: demonstrar favoritismo a um grupo ou colocar um grupo em desvantagem baseado em sua etnia. Assim como Deus julga a todos conforme o mesmo padrão, Ele quer que o seu povo não demonstre favoritismo ou use pesos e medidas diferentes (Levíticos 19:15, Tiago 2:1-4)
  • Ódio: guardar ódio no coração por um pessoa ou um grupo de pessoas por causa de sua melanina, ou da falta dela (1 João 2:9,11; 3:15; 4:20)
  • Ofensas desumanizantes: A Bíblia condena qualquer tipo de ofensa contra outros portadores da imagem divina. O uso de insultos ou piadas ofensivas baseadas na melanina (ou falta dela) de uma pessoa, ou de sua etnicidade viola a dignidade básica do ser humano (Tiago 3:9-10)

Em Gálatas 2, Paulo confrontou Pedro em Antioquia porque, agindo com hipocrisia, ele não se sentou para comer com os gentios, por medo dos judeus. Paulo chamou sua atenção por não agir segundo o Evangelho. A ação de Pedro estava causando divisão na igreja – os judeus cristãos estavam mais influenciados por sua identidade étnica do que pela experiência de unidade em Cristo que todos os cristãos de todas as raças compartilham. Salva de palmas para Paulo. 

O racismo pode existir em qualquer pessoa, de qualquer cor/raça, etnia e idade. Ele não é um problema de cor contra cor, mas um problema de pecado do coração, e como somos todos pecadores, podemos todos cair nele.

Quanto usamos o termo racismo institucional para nos referir a situações onde seres humanos pecadores colaboram entre si para discriminar uma pessoa ou grupo baseado em sua raça ou etnia, estamos afirmando que membros de todas as raças e etnias podem participar deste pecado. A teoria crítica prefere usar o termo “racismo sistêmico” e o identifica, geralmente, como de origem branca, rica e masculina, definindo contra quem devemos lutar para trazer justiça racial. A Bíblia é clara em identificar contra o que lutamos: a cobiça do nosso próprio coração (Tiago 1:14-15, Salmo 51:3).

Muitas das leis do passado eram profundamente racistas e precisaram ser abolidas. Novas leis foram escritas e, hoje, de acordo com a Constituição de 1988, somos legalmente um país cujas leis protegem pessoas de todas as cores/raças, etnias, gêneros, idades e habilidades. O problema existe porque a aplicação da lei é feita por seres humanos pecadores, ou seja, falhos.

Um exemplo bíblico de racismo institucional está em Êxodo 1:15-22, quando o Faraó ordena um genocídio étnico – todo menino hebreu deve ser sacrificado; ou quando Herodes mandou matar todo menino de até 2 anos em Belém em Mateus 2:16. A perseguição religiosa de Nabucodonosor em Daniel 3 ou a conspiração de grupo dos líderes judeus contra Jesus em Mateus 26:59 também são consideradas formas de racismo institucional.

Nos exemplos acima vemos desobediências civis – as parteiras hebreias que desobedecendo ao Faraó deixando os meninos viverem, ou os amigos de Daniel que se recusam a se ajoelhar perante a estátua de Nabucodonosor, ou até mesmo Daniel não deixando de orar – momentos em que, perante um governo que os compelia ao pecado ou prevenia-os de fazer algo requerido por Deus, eles decidiram desobedecer. (Veja que, nesses casos, a desobediência civil é não-violenta, ou eles estariam desobedecendo ao próprio Deus.)

Se o problema é o sistema, não há esperança – já que há tão pouca chance de mudar um sistema. Mas se o problema é o coração do homem, algo que pode ser moldado por Deus (Pv. 21:1, Ez 36:26), então há esperança. Nossa resposta ao racismo interpessoal ou institucional está ancorada nessa esperança: Deus pode mudar corações, e pessoas de corações transformados podem mudar instituições que oprimem.

Nossa resposta ao racismo institucional pode variar de país para país, de instituição para instituição e depende da nossa habilidade, disponibilidade e disposição. Mas quero encorajá-la a tomar atitude:

  1. a) confrontando suas próprias crenças e atitudes perante pessoas de raça/cor/etnia diferentes das suas;
  2. b) se levantando quando ver ou ouvir atitudes racistas por outras pessoas;
  3. c) dando exemplo em amor e ação ao servir àqueles que estão em posição vulnerável.

“Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas.” Isaías 1:17

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  1. IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. 2019. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18319-cor-ou-raca.html