Discussões sobre racismo e injustiça no corpo de Cristo nem sempre são frutíferas ou produtivas. Como este é um tópico sensível que afeta a todas de diferentes maneiras, é comum que caiamos no erro de falar uma por cima da outra ou adotar soluções não-bíblicas. 

Em 1 Crônicas 12.23-32, dentre as principais características dos guerreiros que lutaram com Davi, como “homens valentes”, “capazes de sair à guerra”, “providos com armas”, uma característica que me intriga está no verso 32: “conhecedores da época, para saberem o que Israel devia fazer”. É como se o conhecimento dos tempos fosse tão válido como uma arma. Hoje em dia, não estamos envolvidos em uma guerra física, mas arrisco dizer que o conhecimento dos tempos ainda é uma arma muito útil para os cristãos de todas as gerações. Precisamos de discernimento, e precisamos dele hoje. Infelizmente vejo muitos deixando para a sociologia e a antropologia assuntos que são intrinsecamente bíblicos. É com esse chamado que quero convidar você a uma conversa sobre justiça social. 

Justiça social é um desses assuntos que carregam em si uma variedade de significados, debatidos à torto e à direita nos churrascos, na mídia social e nos jornais como se fosse algo simples e, como cristãs, é fácil abraçar o que este termo parece querer dizer, até porque a Bíblia nos chama à viver a justiça (Sl. 37.28, Mq 6.8). Mas precisamos de discernimento, de um “conhecimento dos tempos” que vai além de algumas horas no Instagram, Twitter ou Facebook, mais profundo que uma busca no Google. 

De acordo com o ensino clássico, existem três maneiras fundamentais pelas quais a justiça se apresenta: A justiça comutativa exige que cada pessoa dê a outra o que lhe é devido. A justiça distributiva manda que a sociedade dê a cada particular o bem que lhe é devido. A Justiça geral, social ou legal determina que as partes da sociedade dêem à comunidade o bem que lhe é devido. 

A justiça social parte do preceito de que, para que se alcance um ponto em que a convivência social torne-se “justa”, é necessário que se estabeleça certa compensação para aqueles que começaram a vida social em desvantagem.(1)

Em Uma Teoria da Justiça (A Theory of Justice), de 1971, o teórico John Rawls defende que uma sociedade será justa se respeitar dois princípios:

  1. Cada pessoa deve ter o mesmo direito ao modo mais completo das mesmas liberdades fundamentais (i.e. liberdade política, de expressão, de associação, religiosa, de consciência e pensamento, etc), compatíveis com um sistema similar de liberdade para todos.
  2. As desigualdades sociais e econômicas devem ser resolvidas de modo que: (a) resultem em maior benefício para os membros menos avantajados da sociedade (princípio da diferença), e (b) os cargos e posições devem estar abertos a todos sobre condições de igualdade de oportunidades (princípio da igualdade equitativa de oportunidades). (2)

Resumindo, na aplicação da justiça social, busca-se um equilíbrio entre as partes desiguais e criam-se proteções políticas e legais (“desvantagens que beneficiam”) para os mais fracos, compensando as desigualdades sociais, e principalmente econômicas, produzidas na sociedade. 

Do outro lado, o teólogo Scott David Allen, em seu livro Porque Justiça Social Não É Justiça Bíblica (Why Social Justice Is Not Biblical Justice), define justiça como uma “conformidade com o padrão moral de Deus”. A Justiça Bíblica é, em sua raiz, consistente com um padrão objetivo de moralidade. Assim, a justiça tem menos a ver com o que os seres humanos fazem uns com os outros, e mais com o padrão pelo qual suas ações são julgadas. 

Ora, o salário do homem que trabalha não é considerado como favor, mas como dívida. Todavia, àquele que não trabalha, mas confia em Deus, que justifica o ímpio, sua fé lhe é creditada como justiça. Davi diz a mesma coisa, quando fala da felicidade do homem a quem Deus credita justiça independente de obras: “Como são felizes aqueles que têm suas transgressões perdoadas, cujos pecados são apagados! Como é feliz aquele a quem o Senhor não atribui culpa!” 

Romanos 4:4-8

A justiça comutativa implica em um viver pacífico, harmonioso e generoso com Deus e com os outros, dando aos outros o que lhes é devido como portadores da imagem de Deus – respeito à sua dignidade e à sacralidade da vida. A justiça distributiva é o julgamento imparcial, a correção de injustiças e a punição quando a lei é transgredida. Por causa disso, ela é reservada a Deus e, em alguma medida, às autoridades ordenadas por Deus – em casa, os pais; na igreja, os presbíteros/pastores; na escola, os professores; e, no governo, as autoridades civis. 

Este modo de viver, cujas raízes estão em um Deus triúno que ama o ser humano que criou, demonstra compaixão e amor que atingem o pobre, o marginalizado e o humilhado. A expansão do Reino de Deus aqui na terra testemunha da sociedade justa que virá quando Cristo regressar. Quando usamos nossa voz e influência para confrontar a injustiça – tanto em relação a Deus, como a idolatria e a imoralidade, quanto o desrespeito à dignidade humana, como tráfico humano, violência, aborto, fome – damos a eles um gostinho do Reino de Deus que um dia virá. Deus odeia a injustiça, e ainda que nesta terra não vejamos justiça perfeita por parte das autoridades nomeadas por Deus, podemos confiar que, um dia, Cristo voltará para aplicá-la. 

Fica, então, a pergunta: onde o conceito de justiça bíblica concorda e discorda com o conceito de justiça social usado atualmente? 

Creio que a resposta esteja na diferença fundamental entre a ética teísta e a ética secular. A ética secular diz “meu comportamento e identidade estão enraizados em sistemas sociais ou em características pessoais auto-rotuladas, portanto justiça significa igualdade de poder e resultado”. A ética teísta diz: “meu comportamento e identidade estão enraizados em Deus e Seus caminhos, portanto justiça significa sustentar a verdade e a retidão.” 

 

A Bíblia É Suficiente

Para enraizar nosso comportamento e identidade em Deus, precisamos conhecer Seus caminhos. Um dos significados de caminhos na Bíblia são os métodos de ação seguidos por Deus, como a sua vontade e os seus mandamentos (Dt. 5.33; 8:6; 10:12; 26:17; Sl. 44:18; 119:15; Is. 2:3); os seus juízos (Is. 26:8); os seus propósitos (Jó 36:23, Sl. 77:13; 103:7; Is. 55:9); o seu governo providencial (Dt. 8:2; II Sm. 22:31.33; Jó 19:8; 26:14; Sl. 18:30; Ez. 18:25).

Só conheceremos a vontade de Deus, seus mandamentos e propósitos ao ler a Bíblia e usá-la para interpretar aquilo que aprendemos e ouvimos em nossa volta, ao invés de permitir que outras leituras nos façam reinterpretá-la. Usar pesquisas e estudos sociológicos para confrontar a Bíblia ou permitir que nossas experiências sejam usadas para interpretá-la é colocar as coisas fora de ordem. 

Como Davi, precisamos pedir a Deus: “vê se há em mim algum caminho mau, e guia-me pelo caminho eterno” (Salmo 139.24), só assim estaremos prontas para agir com justiça.

 

A Justiça de Deus é Suficiente

“Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus. Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus. 2 Coríntios 5.18-21

 

Cristo veio ao mundo para exercer o ministério de reconciliação do homem com Deus. Era justo que o homem, por ser pecador, recebesse condenação eterna. Mas Jesus tomou sobre si a culpa que era nossa e cumpriu a justiça de Deus – por causa Dele, somos considerados justos. Mas o sacrifício de Jesus fez mais do que apenas aplicar justiça ao nosso relacionamento com Deus – ele afeta o nosso relacionamento uns com os outros.

Ora, a mensagem que, da parte dele, temos ouvido e vos anunciamos é esta: que Deus é luz, e não há nele treva nenhuma. Se dissermos que mantemos comunhão com ele e andarmos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade. Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz, mantemos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado. Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós. Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça. 1 João 1.5-9

Ao amarmos a Deus acima de todas as coisas, amaremos ao nosso próximo como amamos a nós mesmos: com respeito, dignidade e prioridade. “Se andarmos na luz… mantemos comunhão uns com os outros”. A resposta bíblica para os problemas da sociedade está em um viver piedoso para com Deus e com os outros. Uma vida justa.

 


  1. RODRIGUES, Lucas de Oliveira. “Justiça social”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/justica-social.htm. 
  2. Rawls, John (1999). A Theory of Justice: Revised Edition. p. 266.
  3. Allen, Scott David (2020). Why Social Justice Is Not Biblical Justice.