Na semana passada, falamos um pouco sobre a verdadeira tolerância, que é afirmada na contradição, ou seja, que tolerar não é sinônimo de concordar, mas sim de respeitar discordando. Algumas perguntas foram levantadas e vamos falar sobre elas hoje: Qual deve ser o papel do cristão na sociedade? O que ele deve fazer, por exemplo, em relação à política? Devemos criar uma “bancada evangélica” ou ser cristão é um assunto relacionado apenas à vida privada? E como lidar não somente com o conflito, mas com a hostilidade em relação à cosmovisão cristã? Para falar sobre estas questões, vamos primeiro passar por alguns pressupostos necessários.

Entenda o que é Pluralismo. Você já ouviu que o pluralismo é “coisa do diabo”? Muitas igrejas cristãs, ao se depararem com uma quantidade tão grande de cosmovisões, acabam condenando o pluralismo. Mas não é porque somos cristãos que temos que ser contra o pluralismo. Na verdade, há duas formas de conceber o pluralismo. A primeira entende que as diferenças devem ser respeitadas e que a diversidade é benéfica para a sociedade. Como afirma Jonas Madureira a respeito deste pluralismo: “[…] cada grupo social – seja religioso, profissional, ou de minorias étnicas – deve desfrutar de autonomia para pensar e assumir suas crenças. Não pode haver uma obrigação de assumir outras crenças […] devemos aceitar que outras religiões existem e respeitá-las e não obrigar pessoas a aceitarem crenças com as quais elas não têm um comprometimento do coração […]”. Aceitar que outras religiões existem não significa concordar com suas doutrinas, mas sim respeitar as outras crenças, discordando delas mesmo assim. Essa é uma posição correta e bíblica.

A segunda e, infelizmente, mais comum visão sobre o pluralismo é a relativista. Essa é a visão, por exemplo, de um vídeo[1] com mais de 12 milhões de visualizações do canal “Porta dos fundos”, o qual ironiza a situação de uma cristã católica que morre e se encontra com um homem vestido com roupas tribais e afirma ser deus. Diante do estranhamento dela, ele explica: “Toda civilização acredita em alguma coisa […] alguma delas tinha que estar certa, certo? E não é que esse tempo todo quem estava certo era o pessoal da tribo da Polinésia?”. Ele passa a condená-la por não ter seguido a religião correta. Ela justifica “Mas eu não sabia…como é que eu ia saber que o deus polinésio era o deus certo?”, mas nada convence o deus polinésio a salvá-la. De uma forma bem humorística, o vídeo apresenta os maiores postulados do pluralismo relativista: não faz sentido afirmar que apenas uma religião é correta. Na verdade, todas elas são igualmente “cegas” e é ridículo ou até arrogante insistir que a sua religião é certa, bem como tentar convencer os outros disso.

Timothy Keller no livro “A fé na era do ceticismo”[2] exemplifica o argumento desse pluralismo relativista da seguinte forma:

Às vezes esse argumento é ilustrado com a história dos cegos e do elefante. Vários cegos seguiam seu caminho quando encontraram um elefante que os deixou tocá-lo e senti-lo. ‘Essa criatura é comprida e flexível como uma cobra’, disse o primeiro cego, segurando a tromba do animal. De jeito nenhum – ela é grossa e redonda como o tronco de uma árvore’, disse o segundo cego, apalpando a perna do elefante. ‘Não, ela é grande e chata’, disse o terceiro cego, tocando a barriga do bicho. Cada cego podia apenas sentir parte do elefante, mas nenhum deles era capaz de ver o elefante todo. Da mesma maneira, argumenta-se que as religiões do mundo têm, cada uma, o conhecimento de uma parte da verdade a respeito da realidade espiritual, mas nenhuma delas é capaz de ver o elefante todo ou reivindicar uma visão abrangente da verdade. O problema é que a história é contada do ponto de vista de alguém que não é cego. Como saber que cada cego vê apenas parte do elefante, a menos que você reivindique ser capaz de ver o elefante todo?”(p.7-8).

O problema, portanto, dessa visão aparentemente humilde, é justamente a soberba do narrador que olha para todas as religiões “cegas”. Essa visão é a mesma que acredita que não é possível ser crente e ao mesmo tempo ser inteligente. Crê que as pessoas religiosas, principalmente cristãs são limitadas intelectualmente, pois ou são manipuladas por seus pastores e líderes ou, no caso de serem pastores ou líderes, são corruptos mau-caráter que manipulam fiéis em busca de dinheiro. Essa postura pluralista é oposta à cosmovisão cristã, pois não somente cala a expressão de pensamento a todas as pessoas religiosas, como também afrouxa a ética e a moral, afirmando que “tudo depende do ponto de vista”.

Entenda o que é Totalitarismo. O totalitarismo é a ideia de fazer (obrigar) todos pensarem da mesma forma, excluindo todo aquele que pensa diferente. É um movimento que massifica as ideias e o indivíduo se perde na coletividade. Hannah Arendt estudou esse fenômeno em seu livro “As origens do totalitarismo”[3] e utilizou os casos do nazismo de Hitler e comunismo de Lênin para analisá-lo. Segundo ela, uma das principais características do totalitarismo é a eliminação do pensamento oposto. Na Alemanha, por exemplo, uma das primeiras medidas de Hitler foi exatamente extinguir os partidos de oposição, restando apenas seu próprio partido, o nacional-socialista.

É verdade que muitas vezes ao longo da história pessoas que se diziam cristãs promoveram movimentos de eliminação do pensamento diferente, como a Inquisição na Idade Média, por exemplo. Mas a cosmovisão cristã não pode ser considerada totalitária. Como afirma Guilherme de Carvalho, em seu artigo “Doze teses sobre o pluralismo”[4]:  

Os cristãos têm uma visão realista sobre o pluralismo. Em uma perspectiva cristã, a diversidade é um valor ambíguo. A diversidade pode tanto ser boa quanto ruim. No mundo dos homens, a diversidade aparece tanto como resultado da individualidade e de diferenças culturais (o lado bom), quanto como resultado de falhas humanas (o lado ruim). Pois há divergências que são fruto de nossos preconceitos, erros de interpretação e falhas morais. Como diferentes grupos sociais têm diferentes visões sobre qual divergência é normal e qual é anormal, não é plausível discutir “pluralismo” sem incluir na discussão essas divergências, e sem reconhecer que o desacordo não pode ser “corrigido” por meio de leis. Todo pluralismo que tente eliminar o desacordo por meio de leis é totalitário.”.

Portanto, é necessário que cada um possa expressar sua cosmovisão, seja ela concordante ou discordante do cristianismo. Ao mesmo tempo, temos que estar sempre conscientes de que Deus é quem tem as rédeas da história. Ele é quem institui as autoridades (Rm 13:1-2) e é Ele que convence os corações (Jo 16:8), como vimos na semana passada. Não adianta, portanto, “corrigir” em leis aquilo que não foi corrigido por Deus no coração das pessoas. Um comportamento cristão não salva ninguém da morte eterna, mas somente o arrependimento genuíno gerado pelo Espírito Santo de Deus. Leis não convencem o coração, mas geram rebeldia e discurso de ódio. Como mostra Wayne Grudem no livro “Política segundo a Bíblia”[5],

“[…] obrigar as pessoas a seguir uma fé não-cristã resulta com frequência na opressão dos cristãos e na tentativa de expulsar o cristianismo do país. Em contrapartida, procurar obrigar as pessoas a tornarem-se cristãs também tem a tendência de expulsar o verdadeiro cristianismo, pois remove da vida das pessoas a oportunidade de escolher voluntariamente seguir a fé cristã. Alguns terão a fé autêntica, mas a maioria não. Como resultado, sociedades inteiras tornam-se cristãs, mas apenas de nome. A igreja é governada por cristãos que na verdade não o são, pois carecem da fé autêntica. E uma igreja controlada principalmente por não-cristãos não demora a tornar-se espiritualmente morta e ineficaz.” (p. 34).

Entendeu o problema de termos uma “bancada evangélica”? É isso que experimentamos hoje: homens e mulheres buscando poder sem demonstrar fé genuína, mas gerando ódio e criando barreiras ao evangelho através de discursos totalitários e escândalos de corrupção[6].

Qual a solução para tudo isso? Certamente não é trancar a fé entre as quatro paredes da igreja e defender que as religiões não devem se manifestar no espaço público – isso seria tão totalitário quanto impor a fé cristã. Grudem propõe uma relação entre o cristão e a política de influenciar para o bem. Isso significa, principalmente, duas coisas:

O cristão não tem só o que dizer a respeito da vida cristã. Uma coisa que me incomodava muito na universidade era a maneira como os próprios crentes universitários separavam a “vida acadêmica” da “vida na igreja”. Não estou falando simplesmente daqueles que viviam de bebedeiras e promiscuidade de segunda a sábado e no domingo estavam louvando a Deus na igreja. Estou falando de jovens piedosos, engajados nos ministérios da igreja. O que acontece normalmente é que, durante as aulas de cálculo, economia, biologia e até mesmo filosofia, simplesmente “desligamos” o botão do pensamento cristão e entramos em um modo de “absorção direta”. Não estou dizendo que temos que levantar a mão no meio da aula e recitar João 3:16 para salvar nossos colegas. Estou dizendo que um crente deve sempre estar atento de forma crítica ao conteúdo do conhecimento que está aprendendo – pois existem verdades e mentiras sendo ditas simultaneamente.

Paulo afirma na sua segunda carta aos coríntios o seguinte: “Porque, embora andando na carne, não militamos segundo a carne. Porque as armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando nós sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo (2 Co 10:3-5). Isso significa que a batalha espiritual acontece muito mais na nossa mente do que em qualquer outro lugar. Combater o mal é, na verdade, destruir fortalezas e anular sofismas – pensamentos falsos e enganosos – levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo, ou seja, renovando a mente, tendo sua cosmovisão transformada por Deus (Rm 12:1-2).

Aconteceu comigo uma vez, em uma aula de Pedagogia da Educação Infantil (eu cursei Pedagogia). A professora estava falando sobre a ideia de infância e de criança que temos hoje (um ser frágil, em desenvolvimento, que temos que proteger, principalmente em relação ao trabalho e ao abuso infantil) ser uma construção social. Na prática isso significa que essa é apenas uma das muitas visões possíveis a respeito da criança, pois não existe uma verdade sobre “o que é ser criança”. Para isso, ela começou a ler alguns relatos de um cara francês[7] sobre a infância durante a Idade Média. Em um dos trechos ele descrevia como os reis e seus filhos pequenos (crianças) comumente masturbavam uns aos outros como forma de diversão – e isso não era visto como um problema moral. Perceba a sutilidade do pensamento: não era visto como um problema moral, mas hoje é – pois construímos esse valor socialmente. Mas, se proteger a sexualidade da criança é uma construção social e não uma verdade absoluta, porque não permitir, por exemplo, a pedofilia consensual[8] (quando a criança quer a relação), como tem acontecido já em alguns lugares da Europa? Claro que a intenção dela não era chegar a esse último passo, mas perceba como o pensamento cristão deve criticar todas as “verdades” prontas. Claro que é muito mais fácil passar quatro anos estudando só para “ir bem na prova”, sem criticar ou pensar sobre nada que você aprende. Mas será que isso é realmente viver a cosmovisão cristã?

Eu levantei a mão e questionei a professora sobre essa ideia de não haver absolutos em relação à criança. Claro que ela não mudou de opinião por conta do meu questionamento, mas, de fato, a classe ficou dividida: alguns acreditavam que a pedofilia deveria ser vista como absolutamente errada, não importando em qual cultura. Outros, diziam que não eram a favor, mas que realmente não podemos ir contra, por exemplo, as culturas que casam meninas com homens mais velhos, pois todas as culturas devem ser respeitadas (pluralismo relativista). Considero que isso é uma coisa muito preciosa e que, de fato, devemos fazer mais: questionar, criticar o conteúdo partindo da cosmovisão cristã. Isso não somente despertou um debate interessante na sala, como também criou interesse em algumas pessoas com as quais depois pude conversar sobre moralidade universal, sobre padrões de certo e errado e, claro, sobre como tudo isso evidencia a existência de um Deus justo, que colocou uma lei no nosso coração (Rm 2:15). Dessa forma, como afirma Nancy Pearcey[9]:

“O propósito dos estudos sobre cosmovisão não é nada mais que libertar o cristianismo de seu cativeiro cultural, destrancando o seu poder para mudar o mundo. ‘O evangelho é como um leão enjaulado’, como disse o grande pregador batista Charles Spurgeon. ‘Não precisamos defendê-lo, só precisamos deixar que saia da jaula’. Hoje a nossa jaula é nossa acomodação à divisão secular/sagrado que reduz o cristianismo a questão de crença pessoal e particular. Para destrancarmos a jaula, precisamos nos convencer de que, como disse Francis Schaeffer, o cristianismo não é uma mera verdade religiosa, mas a verdade total – a verdade sobre a totalidade da realidade”. Essa verdade nos possibilita enxergar mais nitidamente e questionar, apontar as incoerências, pensar e dizer algo sobre todas as coisas – não só sobre a vida cristã. Em última instância, fazer o que temos poder em Deus para fazer: levar cativo todo pensamento à obediência de Cristo.

É preciso assumir uma doutrina encarnacional. Assim como Cristo, que sendo Deus se fez homem (Jo 1:14) e como Paulo, que sendo judeu se fez gentio (1 Co 9:21), nós devemos adotar uma postura encarnacional, ou seja, para influenciar a cultura de alguém precisamos tomar parte dessa cultura, participar da cultura. Isso não implica abrir mão dos nossos padrões morais, mas, em vez disso, vivê-los em meio a uma geração corrompida. Como missionários que vão para países distantes com culturas diferentes, isso exige preparo: aprender uma nova língua, aprender a comer a comida daquele povo, entender o que eles pensam sobre a vida, sobre Deus, etc. Somente depois de tudo isso é que o missionário consegue estabelecer relacionamentos com o povo e comunicar o evangelho.

Nessa perspectiva, devemos nos preparar também, por exemplo, para a universidade. Como eu disse no terceiro artigo da série, muitas vezes nos aproximamos com um “Deixe-me explicar o amor de Deus”, enquanto a pessoa nem mesmo acredita que Deus existe! Então, antes de explicar João 3:16 nos mínimos detalhes, lembre-se que o coração daquela pessoa já tem um compromisso com alguma cosmovisão e que, para compartilhar a sua, você precisa primeiro entender a cosmovisão dela. O que significa isso? Significa estudar muito, pensar muito, se esforçar muito para entender os conteúdos e qual a cosmovisão por trás de cada um deles. Claro que não é fácil, mas temos uma ajuda muito poderosa: o próprio Deus!

Espero que essa série tenha sido um aperitivo para você a respeito de cosmovisão e pluralismo, e que você possa pesquisar, questionar e pensar muito mais a esse respeito! Para isso, gostaria de me despedir deixando uma listinha de indicações de leitura (a maioria delas sugeridas por Jonas Madureira[10] e que eu assino embaixo)! Boa leitura!

INDICAÇÕES DE LEITURA SOBRE COSMOVISÃO E PLURALISMO:

  1. Verdade e Transformação – Vishal Mangalwadi
  2. O Cristianismo Puro e Simples – C. S. Lewis
  3. Dando nome aos Elefantes – James Sire
  4. Visão Transformadora: moldando a cosmovisão cristã – Brian T. Walsh e J. R. Middleton
  5. Cosmovisões em conflito: escolhendo o cristianismo em um mundo de ideias – Ronald Nash
  6. A fé na Era do Ceticismo: como a razão explica as crenças divinas – Timothy Keller
  7. Verdade Absoluta – Nancy Pearcey
  8. Visões e Ilusões Políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas – David T. Koyzis
  9. Como viveremos? – Francis Schaeffer
  10. Política segundo a Bíblia – Wayne Grudem

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[1] Assista o vídeo “Deus” aqui: https://www.youtube.com/watch?v=t11JYaJcpxg

[2] KELLER, Timothy. A fé na Era do Ceticismo: como a razão explica Deus. Vida Nova, 2008.

[3] ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. Schocken Books, 1951.

[4] Disponível em https://www.guilhermedecarvalho.com/doze-teses-sobre-o-pluralismo

[5] GRUDEM, Wayne. Política segundo a Bíblia: Princípios que todo cristão deve conhecer. Vida Nova, 2014.

[6] Leia uma reportagem sobre isso em http://veja.abril.com.br/politica/vinde-a-mim-os-eleitores-a-forca-da-bancada-evangelica-no-congresso/

[7] ARIÉS, P. História Social da Criança e da Família. LTC, 1981.

[8] Veja mais sobre o movimento que busca legalizar a pedofilia em https://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento_ped%C3%B3filo_nos_Pa%C3%ADses_Baixos

[9] PEARCEY, Nancy. Verdade Absoluta. CPAD, 2006. Introdução.

[10] Jonas Madureira, na palestra Cosmovisão e Política. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=W7ZwLzeMfs0