Recentemente eu estava na faculdade e, durante o intervalo, minhas amigas comentavam sobre um ator brasileiro famoso que havia morrido no dia anterior durante as gravações de uma novela. Levado pelo Rio São Francisco durante um mergulho num momento de lazer, seu corpo havia sido encontrado algumas horas depois entre as pedras. [1] O irônico foi que, no enredo da novela, o personagem interpretado por ele também havia sido levado pelas águas do rio e até mesmo dado como morto, mas depois reaparecera. Eu me lembrei do comentário da minha mãe no dia anterior e falei “Nossa, minha mãe disse mesmo ontem: ‘quem mandou brincar com o Velho Chico?’” e ri, achando graça da brincadeira que minha mãe tinha feito com a situação irônica. Mas, para a minha surpresa, uma de minhas amigas perguntou em tom sério: “Porque você acha engraçado? Eu também acho que tem que respeitar o rio”. Eu perguntei, em tom de piada: “Calma, mas você acha que o rio tem vontade própria?”, ao que ela respondeu, chateada, que não sabia ao certo, mas que acreditava nas “forças da natureza”, ou algo assim.

Primeiro me veio um espanto enorme por encontrar, de repente, no meio acadêmico, um pensamento místico e animista. É verdade que as universidades, principalmente as públicas, estão cheias de pensamentos muito opostos ao cristianismo, mas o que se espera, pelo senso comum, é encontrar um ambiente totalmente cético, em que a maioria das pessoas só acredita no que é “provado cientificamente”, excluindo totalmente da equação Deus ou qualquer outra coisa que pareça sobrenatural. Mas isso não é o que acontece, na verdade (e você vai descobrir mais sobre isso ao longo dessa série) a universidade é um ambiente extremamente religioso – não cristão, mas religioso.

Depois, senti-me triste com minha atitude, pois percebi que havia ridicularizado a crença de uma grande amiga, exatamente como costumam fazer com alguém cristão na universidade. Era quase como alguém me perguntar: “Calma, mas você realmente acredita que ele ressuscitou?” ou então “É séria essa história de nascimento virginal?”. Não estou dizendo aqui que ambas as crenças são verdadeiras (a minha e de minha amiga), mas o fato é que esse episódio me sensibilizou bastante para buscar ouvir mais antes de expressar minha opinião de forma tão arrogante e desrespeitosa. A pregação do evangelho obviamente incomodará as pessoas e pode ser que as deixe furiosas afirmar, por exemplo, que só existe um Deus. Mas isso é totalmente diferente de fazer piada com a crença do outro, ridicularizando: isso é como um ruído para o evangelho, não é uma atitude de amor.

Acredito que, hoje, um dos principais problemas dos denominados cristãos evangélicos é justamente este. Buscamos exprimir nossa opinião em todas as redes sociais, queremos defender nossa fé, mas acabamos fazendo isso de forma tão arrogante, que ao invés de “espalhar o bom perfume de Cristo”, estamos espirrando o perfume na cara das pessoas, nos olhos delas e ainda esperando que queiram se aproximar de nós e de Cristo. O objetivo dessa série é apresentar o conceito de COSMOVISÃO, que pode nos ajudar muito a não sair por aí atropelando os outros com nossa fé, mas compreender melhor o mundo no qual vivemos e quais as visões que existem sobre ele. Devo dizer que a maior parte do que vou dizer aqui está muito melhor explicado em um livro chamado “O Universo ao lado” [2], de James Sire, e também em uma série de palestras do Pr. Jonas Madureira para a Escola Charles Spurgeon. [3] Espero que a leitura desperte em você o interesse para se aprofundar mais.

Nem todo mundo pensa como você

Qual o sentido da vida? De onde viemos? Deus existe? Por que e para quê estamos vivos? O que acontece depois da morte? Normalmente essas perguntas aparecem na infância – e já vi muitos adultos gaguejando para respondê-las, rsrs – mas pode ser que você nunca tenha parado para pensar de forma sistemática uma resposta para elas. Mesmo assim, todos nós temos respostas internas e pessoais para cada uma delas e é baseado nessas respostas que vivemos, tomamos decisões pequenas e grandes, construímos nosso caráter e planejamos o futuro.

Um exemplo bem claro de como a cosmovisão determina as nossas atitudes é apresentado pelo indiano Vishal Mangalwadi, no livro “Verdade e Transformação”. [4] O autor, que morava em um contexto pobre na Índia, tem a oportunidade de levar sua filha para passar as férias na Holanda e se espanta com a forma como é feita a venda de leite no país: não há vendedor. Na loja ficam apenas os jarros de leite e um pratinho. O consumidor pega seu leite e coloca o dinheiro no pratinho. Vishal conta esse episódio para um amigo e ele afirma que seria mais esperto: pegaria o leite de graça e ainda levaria o potinho com dinheiro e, se possível, até mesmo as vacas!

Em um contexto de corrupção cultural como o Brasil, podemos nos identificar com a fala do amigo de Vishal, “Que burros! Nós somos mais espertos!”. Mas, como o autor, vamos continuar a reflexão: vamos imaginar que o fornecedor fosse honesto e oferecesse o leite e o potinho para o dinheiro, porém os consumidores fossem desonestos. O fornecedor teria que colocar água no leite para aumentar o volume da sua mercadoria, já que haveria ocorrido um prejuízo (ele teria perdido muito leite, pois pessoas haviam levado mais leite do que pagaram) e também contratar um vendedor para que a situação não se repetisse. Os ativistas com certeza protestariam, dizendo que o leite fora adulterado e o governo teria que contratar fiscalizadores para o leite. Mas quem teria que pagar por esses fiscalizadores? Todos nós, pagando impostos! Ora, se os fornecedores fossem desonestos e os consumidores também, por que os fiscalizadores não seriam? Então, claro, os fornecedores poderiam subornar os fiscalizadores, para que eles pudessem ganhar mais dinheiro. Mas quem pagaria por essa propina? Também nós, os consumidores, pois o fornecedor aumentaria o preço do leite para poder pagar também o fiscalizador. E assim, nós pagaríamos, não só pelo leite, mas também pelo vendedor, pela água no leite, pelo imposto que paga o fiscalizador e pela própria propina. E assim o leite ficaria tão caro que alguém mais pobre não poderia mais comprar o leite para dar aos seus filhos e eles, consequentemente, não seriam tão saudáveis quanto as crianças holandesas. Quem é esperto agora?

Como comenta Jonas Madureira,

“A cultura da confiança e não desconfiança é o que sustenta o sistema holandês. Ele é produto de uma cosmovisão cristã reformada, que convenceu a todos holandeses (inclusive os não cristãos) que a desonestidade e a corrupção é prejudicial a todo mundo. Essa ideia de que o outro é confiável, de que eu não preciso andar “sempre esperto” porque alguém está querendo me “passar a perna” ou ganhar um “dinheiro fácil”, ela gera sucesso econômico […] O que estamos dizendo é exatamente o que a maioria dos economistas evita comentar: que a integridade moral é o fator por trás do sucesso socioeconômico e também político de um país. E de onde vem essa moral? De uma visão de mundo cristã”.

Entendeu agora? A cosmovisão tem a ver com as nossas decisões diárias, com nossos pensamentos e atitudes: quem vale a pena namorar, se seremos ou não mentirosos, qual carreira vale a pena seguir, se vamos ajudar ou não alguém, se vamos estudar para a prova ou colar… Tudo isso decidimos com base na nossa visão de mundo, ou COSMOVISÃO.

Uma boa definição para COSMOVISÃO é apresentada por James Sire no livro “O Universo ao lado”:

Uma cosmovisão é um comprometimento, uma orientação fundamental do coração, que pode ser expressa como uma história ou um conjunto de pressuposições (hipóteses que podem ser total ou parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas), que detemos (consciente ou inconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica da realidade e que fornece o alicerce sobre o qual vivemos, movemos e possuímos o nosso ser.” (p.16).

Você já teve alguma conversa ou discussão com alguém e, mesmo tendo dado todos os argumentos mais fortes, no final não conseguiu convencer a pessoa? Pois é. A cosmovisão não é só uma questão intelectual. Trata-se de um comprometimento da pessoa, do coração da pessoa com um conjunto de pressuposições. Assim, é algo afetivo e refere-se muito mais a apetites e inclinações do que propriamente a racionalidade. Você pode ter os melhores argumentos, mas eles muitas vezes não serão capazes de penetrar o coração.

Além disso, a cosmovisão se refere a pressuposições ou hipóteses que podem ser total ou parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas, ou seja, todos nós temos elementos verdadeiros e falsos em nossas cosmovisões. Paulo afirma em Colossenses 1:13 “Pois Ele nos resgatou do domínio das trevas e nos transportou para o Reino do seu Filho amado”. Segundo Jonas Madureira, a palavra traduzida como transportou é a mesma usada na jardinagem, quando um jardineiro tira uma planta com raízes de um lugar e planta, com as mesmas raízes, em outro lugar. Até que as raízes, que estavam acostumadas com outro solo, se acostumem a viver no novo solo, demora. Assim, trata-se de um processo. É por isso que logo que nos convertemos não passamos, do dia para a noite, a nos comportar e a pensar como cristãos. Vamos, aos poucos, sendo moldados por Deus, transformados, nossa cosmovisão vai sendo alterada para condizer com a cosmovisão cristã. Como disse anteriormente, você pode ter os melhores argumentos, mas eles muitas vezes não serão capazes de penetrar o coração. Somente a palavra de Deus penetra o coração do homem e é capaz de modificar sua cosmovisão. Talvez você já tenha ouvido alguém chamar esse processo de santificação.

Por último, o motivo pelo qual você não consegue analisar e verificar todos os elementos da sua cosmovisão é porque ela é algo que detemos consciente ou inconscientemente, consistente ou inconsistentemente. Ela é como uma lente de óculos. Quando está de óculos, você não fica olhando para a lente, mas olha através da lente. Ela te ajuda a ver melhor, mais claramente. Assim é a cosmovisão, ela é a lente pela qual enxergamos. Às vezes nem nos damos conta de que ela está lá, mas ela está interpretando tudo que vemos.

Assim, concluindo este primeiro artigo, quero enfatizar que talvez você nunca tenha percebido, mas tem uma COSMOVISÃO, uma lente pela qual enxerga toda a realidade! Na próxima semana, buscarei explicar brevemente o que é a cosmovisão cristã e quais as outras cosmovisões majoritárias, ou seja, quais as mais comuns no mundo hoje. Nas semanas seguintes, vamos pensar um pouco sobre como nós, cristãos, devemos lidar com toda essa pluralidade de ideias e pensamentos sobre o mundo de forma humilde e coerente. Até a semana que vem!


[1] Veja reportagem completa em http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/09/ator-domingos-montagner-morre-no-rio-sao-francisco.html

[2] Sire, James W. O Universo ao lado: um catálogo básico sobre cosmovisão. Editora Hagnos, 2009.

[3] Assista a primeira das seis palestras: https://www.youtube.com/watch?v=W7ZwLzeMfs0.

[4] Mangalwadi, Vishal. Verdade e Transformação – um manifesto para nações doentes. Editora Jocum, 2010.