(Con.tras.te)¹ substantivo masculino

  1. Grau marcante de diferença ou oposição entre coisas da mesma natureza, suscetíveis de comparação.
  2. POR EXTENSÃO – comparação de objetos similares para se estabelecerem as respectivas diferenças; cotejo.

O contraste é uma estratégia interessante quando queremos definir algo. Na medicina, por exemplo, para a execução de alguns exames como a tomografia, os médicos introduzem algumas substâncias no corpo que deixam mais evidente a anatomia dos órgãos e podem evidenciar doenças. Nem sempre o contraste evidencia o órgão a ser examinado, as vezes evidencia as partes que não pertencem ao órgão em questão e, assim, ajuda os médicos a ver com mais clareza. Usamos contraste também quando queremos saber se um tom de cor é mais azulado ou esverdeado, contrastando com outros tons de cores. Na sala de aula também usamos contraste para explicar alguns conceitos. Por exemplo, quando vou explicar para as crianças como fazer a letra A, sempre explico também como não fazer a letra A, para que o correto fique evidente. Assim, colocar lado a lado e evidenciar características muitas vezes nos ajuda a definir melhor aquilo sobre o que temos dúvidas. 

DEUS ENSINA POR CONTRASTE

Deus também faz contrastes para nos ensinar. Veja os Dez Mandamentos, por exemplo. Quando vai ensinar ao povo como deveriam viver, Ele por diversas vezes aponta para o que não deviam fazer. Assim, se olhamos para os mandamentos de maneira pragmática, talvez enxerguemos apenas proibições, mas Deus na verdade está sendo bem didático e instrutivo. Pense por exemplo no mandamento “Não tomarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão” – você pode ser pragmático e entender que Deus está apenas dizendo que não devemos ficar falando o nome dele em qualquer situação, mas na verdade Ele está dizendo que temos que viver vidas que apontem claramente para quem Deus é, ou seja, viver uma vida que exalta constantemente o nome de Deus.

Ou pense no mandamento “Não matarás”. Será que a vida que Deus quer é apenas que evitemos pegar uma arma e atirar em alguém? Ou Ele na verdade deseja que aprendamos o oposto de tirar vidas, ou seja, dar vida? Deus quer que vivamos promovendo a vida, contribuindo para que pessoas vivam bem e melhor. Deus deseja que sejamos motivadas a contribuir com a vida das pessoas, seja compartilhando da salvação ou sendo benção para todos ao nosso redor.

Vamos olhar para mais um: “Não adulterarás”. Será que é só não ter relação com uma pessoa que não seja seu cônjuge? Ou na verdade cumprir esse mandamento seria viver o melhor casamento possível, sendo o mais fiel possível? Bom, se você já leu o sermão do monte (Mt 5), onde Jesus explica um pouco dos princípios por trás dos mandamentos, então você já deve ter entendido que “se a justiça de vocês não for muito superior à dos fariseus e mestres da lei, de modo nenhum entrarão no Reino dos céus” (v.20).

Pensando nessa justiça que é superior aos padrões humanos, semana passada iniciamos nossa caminhada em busca de uma vida virtuosa. Pensamos em algumas definições de virtude e também pensamos sobre palavras relacionadas, como “hábitos” e “disciplina”. No final de nossa reflexão, chegamos à conclusão de que para ser virtuosa não basta agir virtuosamente, é preciso amar a virtude. Vamos aos poucos percebendo então que não é possível expressar uma prática virtuosa, que agrade e exalte a Deus, sem um coração movido por amor a essa “justiça superior”. Mas antes de ir fundo ao coração, vamos fazer mais um pouco de contraste. Vamos contrastar virtudes com vícios para entender melhor o que cada uma das virtudes pode nos ensinar. 

CONTRASTANDO VÍCIOS E VIRTUDES

A palavra vício vem do latim “vitium” e significa “falha, defeito”. É considerada o oposto de virtude pois trata-se de um hábito repetitivo que degenera ou que causa prejuízo tanto ao viciado, quanto aos que estão à sua volta. Por isso, embora comumente usemos “vício” para falar de pessoas alcoólatras, com dependência química ou que fazem uso frequente de pornografia, na verdade podemos dizer que todo pecado é um vício, pois degenera e prejudica tudo à sua volta ². A tradição cristã formulou algumas listas de virtudes que são interessantes para nós aqui. E a primeira delas foi forjada justamente pelo contraste com alguns vícios (pecados). Você já deve ter ouvido falar sobre os sete pecados capitais, não é? Essa listinha sistematizada por Tomás de Aquino no século XIII reunia os principais tipos de vícios encontrados nas Escrituras, e deu origem à lista das sete virtudes fundamentais.

VÍCIO VIRTUDE
ORGULHO / SOBERBA HUMILDADE
INVEJA BONDADE
IRA PACIÊNCIA
PREGUIÇA DILIGÊNCIA
AVAREZA CARIDADE
LUXÚRIA CASTIDADE
GULA TEMPERANÇA

Assim, seguindo o mesmo princípio dos Dez Mandamentos, podemos entender que todas as diversas vezes que Deus aponta para a condenação de práticas soberbas, invejosas, iracundas, preguiçosas, avarentas, imorais ou glutonas Ele está ao mesmo tempo ensinando o tipo de prática que quer que a gente tenha: práticas humildes, bondosas, pacientes, diligentes, generosas, puras e equilibradas. Um texto muito claro em que todos esses princípios aparecem é o de Gálatas 5:14-23:

“Toda a lei se resume num só mandamento: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’.
Mas se vocês se mordem e se devoram uns aos outros, cuidado para não se destruírem mutuamente. Por isso digo: vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos da carne. Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam. 

Mas, se vocês são guiados pelo Espírito, não estão debaixo da lei. Ora, as obras da carne são manifestas: imoralidade sexual, impureza e libertinagem; idolatria e feitiçaria; ódio, discórdia, ciúmes, ira, egoísmo, dissensões, facções e inveja; embriaguez, orgias e coisas semelhantes. Eu os advirto, como antes já os adverti, que os que praticam essas coisas não herdarão o Reino de Deus. Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio. Contra essas coisas não há lei.”

A lei do Antigo Testamento, aquela dada por Deus a Moisés e ao povo, portanto, cheia de “nãos”, pode ser resumida justamente por um princípio claro e diretivo, o amor. Viver uma vida de mútua destruição é o contraste. Dizer “sim” às paixões da carne é, na verdade viver uma vida repleta de vícios, conflitos e morte. Ao contrário disso, a vida que Deus deseja que vivamos é movida pelo amor. Amor que se expressa em virtudes, virtudes que dependem de uma vida vivida pelo Espírito, vivida na dependência de Deus, que é a verdadeira liberdade.

O MEIO-TERMO VIRTUOSO

Uma vez que já exploramos um pouco do contraste feito pelas Escrituras e pela tradição cristã, não queria terminar a reflexão de hoje sem nos debruçarmos também sobre o contraste feito pelo filósofo Aristóteles. Claro, ele não conheceu a liberdade oferecida por Cristo para viver uma vida virtuosa. Mas sua sistematização de virtudes traz um aspecto importante para nossa reflexão. Ao invés de apontar apenas um vício para cada virtude, Aristóteles mostra que os vícios estão em dois extremos de uma linha, cujo centro ou equilíbrio é a manifestação perfeita da virtude. Vamos olhar essa tabela³ com alguns desses contrastes para entender isso melhor.

 

VÍCIO VIRTUDE VÍCIO
COVARDIA CORAGEM PRECIPITAÇÃO
MESQUINHARIA GENEROSIDADE EXTRAVAGÂNCIA
PREGUIÇA DILIGÊNCIA GANÂNCIA/ATIVISMO
SIGILO HONESTIDADE LOQUACIDADE
IRA/BRIGAS AMIZADE BAJULAÇÃO
INDECISÃO AUTOCONTROLE IMPULSIVIDADE

Não é interessante esse aspecto de pensar que os extremos são pecaminosos e o equilíbrio é aquilo que Deus deseja? Quantas vezes buscamos evitar o pecado de um extremo e acabamos pulando para o outro extremo pecaminoso! Como é fácil um covarde se tornar um tolo precipitado, ou pensarmos que para compensar o tempo que passamos irados contra alguém, agora temos que bajula-lo. Não. A “justiça superior” é muito mais nobre que isso. Mas vamos entende-la mais ainda na semana que vem. Por enquanto, quero deixar vocês com o encorajamento que o apóstolo Paulo deu aos Filipenses (4:8)

“Se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso que ocupe o vosso pensamento.”

 

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 ¹Definição de Oxford Languages.

² Encontramos essa comparação em livros como “Hábitos Escravizadores”, de Ed Welch ou mesmo em “Pecados Intocáveis”, de Jerry Bridges.

 ³ Fonte: Curso de Educação Clássica da Trinitas.